O Aquífero Guarani ameaçado – 1

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A Assembleia Geral das Nações Unidas declarou “o direito à água potável, limpa e segura, e ao saneamento como um direito humano que é essencial para o pleno gozo da vida e de todos os direitos humanos”.

A resolução recebeu 122 votos a favor, nenhum voto contra e 41 países abstiveram-se. As abstenções foram, entre outros, da Armênia, Austrália, Áustria, Botswana, Bulgária, Canadá, Dinamarca, Eslováquia, EUA, Grécia, Guiana, Islândia, Irlanda, Israel, Japão, Kazakhstan, Luxemburgo, Malta, Holanda, Nova Zelândia, Polônia, República da Coreia, República Tcheca, Romênia, Suécia, Trinidad e Tobago, Turquia, Ucrânia e Reino Unido.

Estima-se que cerca de 1,1 bilhão de pessoas não têm acesso à água potável (no Brasil, são cerca de 40 milhões) e 2,5 bilhões de pessoas não são atendidas por serviços de saneamento (cerca de 100 milhões de brasileiros). Em consequência, mais de duas crianças morrem a cada minuto, por doenças de veiculação hídrica, isto é, complicações decorrentes da falta de qualidade da água.

O investimento anual para corrigir, até 2025, a falta de saneamento no mundo, é estimado em US$ 9,5 bilhões. Este investimento resultaria em US$ 66,5 bilhões anuais de economia em dispêndios, hoje realizados na solução dos problemas de saúde decorrentes da falta de saneamento e que, a cada ano, subtraem 5 bilhões de dias de trabalho e 443 milhões de dias de aula. Ou seja, a cada US$ 1 investido em saneamento, retornariam outros US$ 7.

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A resolução da ONU, apesar de discorrer sobre o óbvio, a água como direito fundamental, fortalece a discussão sobre a transformação da água em mercadoria, uma “commodity”.

O modelo econômico obsessivamente consumista e que ameaça com a privatização de fontes de água, mananciais, barragens e hidrovias, em escala mundial, é assim questionado. A insegurança hídrica dele resultante é questionada também no comprometimento da potabilidade, em consequência da emissão de efluentes e disposição inadequada de resíduos, caso recente e dramático do Rio Doce, praticamente extinto pela irresponsabilidade de empresas mineradoras (Samarco, Vale e BHP Billington, esta uma corporação multinacional).

A indisponibilidade de água para tamanha população, no entanto, resulta também do mau uso, representando mais do que mera disponibilização de “recursos financeiros, capacitação e tecnologia, através de ajuda e cooperação internacional, em particular aos países em desenvolvimento” como prevê a resolução, em seu artigo segundo.

Cerca de 70% do consumo total de água é para o uso agropecuário, onde a substituição das formas onerosas de abastecimento, como a dos pivôs centrais, por sistemas mais adequados de irrigação (canaletas e gotejamento, por exemplo) esbarra em interesses políticos e nos resquícios autoritários do agronegócio, sucessores das “plantations”, com seus coronéis congelados no século XVII e XVIII. O consumo pessoal, frequentemente acusado de desperdício, responde por apenas 2% do consumo total.

Outras formas menos evidentes de privatização deste direito fundamental, mas tão importantes quanto, estão representadas pela extração de madeira de florestas ou pela conversão de florestas para a agricultura ou para a criação de gado em grande escala. São casos também da mineração e da exploração de petróleo, na medida em que os produtos químicos usados ou liberados nestas atividades, interferem na disponibilidade de água potável.

Outras formas de apropriação privada derivam de reflorestamentos econômicos, que consomem grandes quantidades diárias de água ou do resfriamento e congelamento requerido na comercialização de carnes.

Outra significativa forma de preservar as reservas de água doce existentes corresponde aos aquíferos. Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina compartilham o Aquífero Guarani, reservatório colossal de águas subterrâneas, geologicamente formado por basalto, derramado nos períodos Triássico, Jurássico e Cretáceo Inferior, o que significa algo formado por 200 milhões a 130 milhões de anos.

As reservas permanentes de água doce do Aquífero Guarani são da ordem de 45.000km³. Estima-se que o potencial de exploração sem riscos de suas reservas seja de 40km³ anuais. Hoje, a maior ameaça ao Aquífero Guarani deriva da política econômica, com o risco de privatização das reservas de água e suas consequências, como se verá na continuidade desta coluna.

O modo de produção capitalista distancia-se do sistema ambiental, exigindo de governos, instituições, comunidades, universidades e agentes econômicos a gestão democrática das externalidades negativas, inerentes a uma sociedade baseada no consumo obsessivo e na consequente pressão sobre os recursos naturais.

Nenhuma atividade econômica que venha a comprometer os recursos hídricos pode mais ser aceita e já há registros de lutas contra a privatização deste bem comum, herança do planeta e direito fundamental do Homem. É o caso da “Guerra pela Água”, iniciada em 1999, que veremos na próxima edição.

Paulo Márcio de Mello

[email protected]

Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

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