As condições e os conceitos
Em novembro de 1989, poucas pessoas atentaram para mudança na ética da sociedade que o documento, apresentado por empregados de instituições financeiras internacionais, como orientação econômica, na verdade mudança constitucional em muitos países, iria provocar.
Vamos recordar os 10 Mandamentos do “Consenso” de Washington.
- Disciplina fiscal, evitando grandes déficits fiscais em relação ao Produto Interno Bruto (PIB);
- Redirecionamento dos gastos públicos de subsídios (especialmente subsídios indiscriminados) para uma ampla provisão de serviços essenciais pró-crescimento e pró-pobres, como educação, saúde e investimento em infraestrutura;
- Reforma tributária, ampliando a base tributária e adotando alíquotas marginais moderadas;
- Taxas de juros determinadas pelo mercado;
- Taxas de câmbio competitivas;
- Livre comércio: liberalização das importações, com ênfase na eliminação de restrições quantitativas (licenciamento, etc.), proteção comercial a ser fornecida por tarifas baixas e uniformes;
- Liberalização do investimento estrangeiro direto interno;
- Privatização de empresas estatais;
- Desregulamentação: abolição das regulamentações que impedem a entrada no mercado ou restringem a concorrência, exceto aquelas justificadas por motivos de segurança, proteção ambiental e do consumidor e supervisão prudencial de instituições financeiras;
- Segurança jurídica para direitos de propriedade privada.
O que era facilmente identificável era o afastamento dos Estados Nacionais da condução da economia dos países. Era o triunfo de um pensamento que foi denominado neoliberal.
O que é o neoliberalismo? “Neoliberalismo é uma doutrina econômica e política que surgiu no século 20 com base em ideias formuladas por teóricos, como o economista ucraniano Ludwig von Mises e o economista austríaco Friedrich Hayek. A teoria neoliberal surge para opor-se à teoria keynesiana do bem-estar social e propõe nova leitura da parte econômica do liberalismo clássico, tendo como base a visão econômica conservadora que pretende diminuir ao máximo a participação do Estado na economia” (Francisco Porfírio, em Mundo Educação, 14/11/2023). Com pequenas alterações e ênfases, esta formulação tem aceitação geral, e ficaremos com ela.
No “Consenso de Washington” tanto quanto nesta conceituação é nítido o papel secundário dos Estados Nacionais, principalmente enquanto regulador das relações, aparentemente econômicas, mas que englobava o próprio comportamento social, uma vez que eventuais restrições acabariam por atingir a liberdade de contratar ou se relacionar.
Toda a década de 1980 foi destinada a tirar o papel regulador e uniformizador do Estado Nacional, principalmente nas relações de trabalho e nos direitos sociais, no mundo ocidental.
O que denominaremos “mundo ocidental” é o mundo do Atlântico Norte, mundo Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) embora vá muito além do pacto militar.
Nem se dava conta que o liberalismo do acordo de Bretton Woods (julho de 1944), encontrava o mundo com poucos Estados Nacionais, pois prevaleciam na África, na Ásia, na Oceania e nas Américas e Caribe, estados colônias de potências europeias e estadunidenses. O que levou os Estados Unidos da América (EUA) a romper com o acordo (1971) foi que lhe tolhia o desenvolvimento, que a população dos EUA demandava, e a inserção mundial estavam exigindo.
As duas grandes guerras (1914-1918 e 1939-1945) transferiram para a industrialização o poder até então exercido pelas finanças.
Se os primeiros anos após a 2ª Grande Guerra foram de grande desenvolvimento, é preciso coletar algumas evidências e circunstâncias. De início a diferença das finanças que apenas precisavam dominar o Estado para que este se endividar e pagasse as mais altas taxas de juros possíveis, no que seria seguido por todos demais, pessoas físicas e jurídicas necessitadas de recursos.
Não havia preocupação com a produção nem com o consumo. Os rentistas, na quase totalidade, pertenciam à aristocracia fundiária, viviam dos aluguéis de todos que morassem em suas propriedades, que abrangiam os “manso” medievais: senhorial, servil e comunal.
A industrialização erigiu o consumidor como principal preocupação. As riquezas se originavam da quantidade de produtos vendidos, e a disputa se dava na qualidade e no preço. Também a comunicação de massa, antes reduzida aos alfabetizados, com o advento da televisão (1941) passou a incluir todas famílias e pessoas de todas idades. Estatísticas estadunidenses dão conta que, no pós-guerra, quase a totalidade das residências nos EUA possuía, no mínimo, um aparelho de TV. Era o maior incentivo ao consumo que o mundo até então conhecera.
A tecnologia desenvolvida para guerra foi transferida para uso da indústria de produção de bens e para empresas prestadoras de serviços. A universalização deste modelo se deu sob controle dos vencedores da guerra: no campo capitalista, os EUA; no mundo socialista, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Em dez anos de aplicação das diretrizes de Bretton Woods, os países começaram a se organizar para a libertação das limitações impostas e ganhar suas soberanias. Foi realizada a Conferência de Bandung (abril de 1955), na Indonésia, que reuniu 29 líderes da Ásia e da África para a discussão de questões tais como a cooperação econômica, a autodeterminação, a descolonização e a paz, capitaneada pelos líderes da China (Xou En Lai), Indonésia (Sukarno), Índia (Nehru), Egito (Nasser), Camboja (Norodom Sihanouk): Afeganistão, Arábia Saudita, Birmânia, Ceilão, Etiópia, Filipinas, Irã, Iraque, Israel, Japão, Jordânia, Laos, Líbano, Libéria, Líbia, Nepal, Paquistão, Síria, Turquia, República Democrática do Vietname, Vietname do Sul e Iémen. A Frente de Libertação Nacional (FLN) da Argélia também enviou representante, Hocine Aït-Ahmed, mesmo não sendo Estado Independente.
De 1947 a 1991 tem-se a “Guerra Fria”, com início no discurso do presidente Harry Truman, no Congresso estadunidense, solicitando verba para combater o comunismo e a influência da URSS na Europa.
Os primeiros 40 anos – o desenvolvimento (1945-1985)
A Associação Francesa de Economia Política designa o período do fim da segunda guerra até as crises do petróleo (1973/1979) de “os 30 anos gloriosos”, pois aquele País conheceu o desenvolvimento social, econômico, cultural, com ampla participação popular, como jamais houvera.
Não queremos dizer, obviamente, que, em tal período, não tenha havido tensões e contradições. Existiram, e muitas, pois assim caminha a história. Realçamos, porém, que, do ponto de vista da construção nacional, foi nesse período que as melhores condições para o aprofundamento de políticas de desenvolvimento econômico e de integração social foram proporcionadas.
No Brasil tivemos a Era Vargas, nossos 50 anos gloriosos, que têm início com a vitoriosa Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas, e vai até o golpe na sucessão do presidente Ernesto Geisel (1980), quando os setores transnacionalizantes, até então incubados, começaram a operar a captura do Estado a fim de desmontar a estrutura de planejamento que permitiu ao Brasil organizar, pela primeira vez, uma economia interna dinâmica e integrada geográfica e socialmente.
Descrever a Era Vargas foi o encargo que o historiador e jornalista José Augusto Ribeiro assumiu em três obras magníficas e indispensáveis: A Era Vargas (2001), em três volumes, Tancredo Neves A Noite do Destino (2015) e A História da Petrobrás (2023).
Como era o Brasil em 1930? Sob o ponto de vista político institucional uma imensa fazenda, dominada por oligarquias mineiras e paulistas, que se alternavam na Presidência da República, mantendo o país sob o regime agroexportador. Toda estrutura organizacional se concentrava nas funções de interesse imediato desta elite.
Assim, atividades como a educação, a saúde, a industrialização e, obviamente, o trabalho eram deixadas sem ação de governo, sem recursos públicos, fazendo o Brasil, na realidade, continuar um país de escravos.
Em 1920, 71,2% da população eram analfabetas (Ana Emília Cordeiro Souto Ferreira e Carlos Henrique de Carvalho, “Escolarização e Analfabetismo no Brasil: Estudo das Mensagens dos Presidentes dos Estados de São Paulo, Paraná e Rio Grande do Norte (1890-1930)”).
No confronto que Souto Ferreira e Carvalho apresentam em seu trabalho, também se verifica a desigualdade regional. Enquanto em São Paulo e no Paraná o índice de analfabetos era da ordem de 73%, no Rio Grande do Norte atingia 88%.
Um Brasil socialmente injusto, reduzido praticamente a poucas partes do sudeste, ou seja, com desigualdades econômicas, culturais, regionais, um Brasil de “diversos brasis”, na visão do genial antropólogo Darcy Ribeiro.
Assim não se surpreende que o Exército, alfabetizado por força da necessidade profissional, participante da mudança do regime monárquico para o republicano, passasse, com parte da intelectualidade, a década de 1920 organizando movimentos de insatisfação: a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, em 1922, a Revolta Paulista de 1924, a Comuna de Manaus de 1924, a Coluna Prestes, entre os anos de 1925 e 1927, aos quais se somam os culturais Movimento Pau-Brasil, Movimento Verde-Amarelo, Grupo da Anta, Movimento Antropofágico, além da Semana de Arte Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo, de 13 a 17 de fevereiro de 1922. Em relação às publicações, destacamos as revistas Klaxon e Antropofagia.
Todos estes eventos traduziam a insatisfação de um povo com o imobilismo subserviente aos capitais estrangeiros que dirigiam, então, o Brasil. A Revolução de 1930, tendo nascido no Rio Grande do Sul e na Paraíba, com apoio de Minas Gerais, foi um movimento nacional brasileiro. E ela surge no meio da crise internacional, provocada pela financeirização, de 1929, na Bolsa de Nova Iorque. Que atinge o Brasil, exportador de café, por ter reduzido suas vendas internacionais. A elite cafeeira, em crise, não teve como combater a revolução, o que o fará em 1932, com auxílio dos capitais ingleses, que desde 1808 vinham controlando os governos brasileiros.
Com a Revolução de 1930, as oligarquias cafeeiras, se não perdem suas propriedades, são destronadas do comando político do Brasil, que passa à coalizão cívico-militar organizada em torno da candidatura de Getúlio Vargas. Inicia-se novo ciclo no País, no qual os interesses econômicos e regionais são incorporados ao sentido estratégico encetado pelo Estado que, pela primeira vez, deixava de ser cartorial e se tornava nacional.
A rápida industrialização e a simultânea implementação do bem-estar social pelas leis trabalhistas e previdenciárias manifestaram a conquista de soberania do Brasil, que, cada vez mais, colocou sob o guarda-chuva público as finanças, os recursos naturais e as infraestruturas, de modo a verter a dinâmica econômica para dentro, não mais para fora como havia sido até então.
Nos anos que vão de 1930 a 1985, o Brasil saiu de colônia de capitais estrangeiros para uma economia que fabricava, como somente outros quatro países no mundo, com hardware e software próprios, os minicomputadores. O Brasil conheceu por breves momentos a Soberania!
Felipe Maruf Quintas, doutor em ciência política pela Universidade Federal Fluminense (UFF), produz e apresenta o canal “Brasil Independente”, pelo YouTube.
Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado, foi membro do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra (ESG) e Consultor das Nações Unidas na África (UN/DTCD 1987/1988).
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