A Argentina é um barril de pólvora prestes a explodir

Entrada dos barra brava é sintoma da intensificação da luta de classes na Argentina. Por Eduardo Vasco

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Barra brava em protesto de aposentados na Argentina
Barra brava em protesto de aposentados na Argentina (foto de Martín Zabala, Xinhua)

Os banqueiros internacionais colocaram Javier Milei à frente da Argentina sabendo que a situação do país e do mundo exige uma ditadura para saquear os espólios do povo. Já não se trata mais apenas de sugar as riquezas naturais, como o lítio – que está sendo entregue a Elon Musk – ou comprar a carne a preço de banana. Com Milei, é um assalto puro e simples do dinheiro da população.

Desde que chegou ao poder, Milei roubou 5% do PIB argentino, gerando o tão perseguido superávit fiscal, para pagar os juros da eterna dívida com o FMI. Mas o que são esses 5% do PIB argentino? Parcelas de salários, aposentadorias e subsídios para a compra de remédios, comida, transporte e conta de luz. Milei é um Robin Hood às avessas: tira dos pobres para dar aos ricos.

Não que isso seja uma grande novidade na Argentina. Desde 1958, o país já assinou 22 acordos com o FMI. O que o atual presidente está buscando será o 23° pacote de dívidas com o órgão máximo dos banqueiros internacionais. A Argentina é a devedora de quase um terço de todos os empréstimos do FMI.

Essa dívida, os observadores mais atentos sempre souberam que nunca será paga. Maurício Macri – que todos achavam que não seria superado em entreguismo – contraiu um empréstimo recorde em 2018. O dinheiro do resgate negociado por Alberto Fernández, em 2022, foi usado apenas e tão somente para pagar os empréstimos anteriores. Claro, não a dívida em si, mas os juros e amortizações, altíssimos.

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Daí a desmoralização completa do peronismo, que agora denuncia a rapinagem mileísta e promete não reconhecer a nova dívida quando voltar ao governo. Pura demagogia eleitoreira. Os políticos peronistas também serviram de capitães do mato nesses quase 70 anos de escravidão do povo argentino para o FMI. Suas soluções às meias, quando não às nulas, não têm feito mais do que enganar os trabalhadores e estudantes sem se aprofundar minimamente na raiz do problema.

A nova etapa de crise econômica em que entra o mundo capitalista, sem mesmo se ter despedido daquela de 2008, vai fazer com que se tensionem as relações de classe a nível global. A Argentina está extremamente vulnerável a ela. A nova dívida, de US$ 20 bilhões, obviamente não terá a menor chance de sanar nem uma parcela do que é devido ao FMI. Ela vai rolar e rolar, na mesma medida em que também irão rolar as cabeças dos aposentados e trabalhadores sacrificados pelo terror neoliberal.

“É uma dívida eterna”, disse a uma rádio o diretor do Observatório da Dívida Pública da Argentina, Alejandro Olmos Gaona. Segundo o historiador, o grosso da dívida foi gerado durante a ditadura militar de 1976 a 1983. Mas ela era de “apenas” US$ 45 bilhões ao final da ditadura, e desde então, apesar de terem sido contraídos empréstimos atrás de empréstimos, em vez de ser quitada, ela aumentou em mais de dez vezes, descontando o que já foi pago. “Já pagamos mais de US$ 400 bilhões e hoje o passivo total chega a US$ 480 bilhões, gerando mais de US$ 22 bilhões em juros anuais.”

Geladeira só com água: pobreza na Argentina, um barril de pólvora prestes a explodir
Geladeira só com água: pobreza na Argentina (foto de Martín Zabala, Xinhua)

O governo manipula os dados oficiais de inflação e pobreza, o que, logicamente, não consegue fazer ocultar a trágica realidade. Segundo o Centro Estratégico Latino-americano de Geopolítica (Celag), Milei confiscou cinco dos 14 meses de aposentadoria dos velhinhos, tamanha foi a perda acumulada pela inflação até janeiro.

Desde o início de seu governo, há um ano e meio, Milei aumentou exponencialmente a repressão. Buscou impor uma lei antiterrorismo e a utilização das Forças Armadas como polícia e multou, sancionou e prendeu manifestantes. Em uma das inúmeras manifestações que têm tomado conta de Buenos Aires desde o ano passado, na segunda semana de março mais de 100 pessoas foram presas em frente ao palácio do Congresso por protestarem contra o corte nas pensões e o alto custo de vida.

Foi uma das primeiras em que os barra brava apareceram em peso. Esse é um detalhe importante, pois as torcidas organizadas são uma poderosa estrutura da classe operária na Argentina, embora estejam frequentemente imersas na degradação social. Mas sua entrada em cena é um sintoma da intensificação da luta de classes. Falta-lhes direção política, como a praticamente todas as entidades populares do país.

Os parlamentares da direita, tradicionais serviçais do capital estrangeiro, também dão seu empurrãozinho para a piora das relações sociais. Eles deram o seu aval ao acordo de Milei com o FMI, do lado de dentro da Câmara dos Deputados, enquanto o povo pedia a sua cabeça e xingava o fundo monetário do lado de fora, uma semana após a manifestação anterior.

Se, por um lado, o regime Milei é um protótipo de modelo a ser exportado pelo imperialismo para o resto da América Latina, por outro a revolta social que cresce no seio do povo argentino também tende a se espalhar para seus vizinhos, à medida que os efeitos da nova situação política, econômica e social que se abre no mundo se tornarão insuportáveis.

Eduardo Vasco é jornalista especializado em política internacional, foi correspondente na guerra da Ucrânia e escreveu os livros-reportagem O povo esquecido: uma história de genocídio e resistência no Donbass e Bloqueio: a guerra silenciosa contra Cuba.

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