A recente autorização para operação de 7,5 mil satélites da Starlink no Brasil, dada pela Anatel, revela uma grave lacuna na governança espacial brasileira. Embora a decisão inclua condicionantes técnicas, como evitar interferência em satélites geoestacionários e um “alerta regulatório” sobre riscos à sustentabilidade orbital, a medida foi tomada sem que o Brasil tenha uma política nacional clara para serviços via satélite.
A autorização dada à Starlink não estabelece limites de satélites por órbita para evitar congestionamento, não exige compromissos com descarte responsável de satélites desativados e tampouco abordou adequadamente as questões de soberania digital, já que essa empresa opera sob leis estrangeiras norte-americanas.
Embora seja reconhecida a importância da internet via satélite para áreas remotas do país, esse benefício não pode vir às custas do meio ambiente espacial e da falta de regulamentação adequada. Enquanto outros países avançam na governança orbital, o Brasil corre o sério risco de se tornar um verdadeiro “lixão espacial” por negligência regulatória.
A decisão tomada estabeleceu para a Starlink a obrigação de evitar interferências em redes geoestacionárias, exigindo relatórios periódicos e transparência de dados, além de monitoramento permanente. No entanto, o próprio texto do ato da agência reguladora admite a falta de marco normativo atualizado para lidar adequadamente com o lixo espacial (sustentabilidade orbital), a soberania digital (dados trafegados sob jurisdição estrangeira) e a concorrência desleal (domínio da Starlink no mercado).
É preocupante que, apesar de reconhecer esses riscos por meio do “alerta regulatório”, a autorização tenha sido concedida antes da resolução dessas lacunas fundamentais. Enquanto o Brasil age de forma reativa, outros países já impõem regras rigorosas: licenciamento condicional com estudos de impacto orbital prévios, taxação específica para custear a limpeza espacial (como taxas por satélite para mitigação de detritos), normas de proteção astronômica (exigindo redução de reflexos luminosos) e a obrigatoriedade de “seguro ambiental” para operadores.
No caso brasileiro, a Starlink pagou apenas R$ 102,6 mil pelo direito de exploração — valor irrisório frente aos riscos envolvidos — e não tem que cumprir qualquer exigência quanto à remoção de satélites desativados, diferentemente de outros países que estabelecem prazos para essa remoção. Diante desse cenário, considera-se que a autorização concedida é prematura e arriscada.
O Ministério das Comunicações (MCom) deveria suspender imediatamente a autorização dada até que se defina uma política nacional moderna e adequada para serviços satelitais. Paralelamente, seria fundamental abrir um amplo debate público com cientistas, entidades da sociedade civil e especialistas para estabelecer limites adequados de satélites por órbita, exigir planos de descarte sustentável e garantir efetiva soberania sobre os dados trafegados.
Além disso, novas autorizações deveriam estar vinculadas à realização de Análises de Impacto Regulatório (AIR) robustas, como chegou a ser sugerido, mas não implementado, pela própria agência setorial.
A pressão exercida pela Starlink — que alegou estar “recusando clientes” sem os novos satélites — não pode servir de justificativa para negligência regulatória. Uma autorização precipitada como essa configura um risco estratégico para o país.
O Congresso Nacional tem papel fundamental nesse processo, devendo promover debates e audiências públicas para formular uma política pública adequada que assegure a soberania espacial brasileira. Cabe ao MCom, em conjunto com o Legislativo, liderar a criação urgente de um Marco Legal para Serviços Orbitais, alinhado às melhores práticas e diretrizes internacionais. Sem essa ação coordenada, o Brasil continuará refém de decisões apressadas, enquanto a comunidade internacional avança na proteção do espaço como bem comum da humanidade.
Israel Fernando de Carvalho Bayma é engenheiro eletrônico e advogado, especialista em regulação de telecomunicações.