Dentro do ramo do Direito Civil, existem duas categorias de pessoas que integram o ordenamento jurídico: as pessoas físicas (art. 2º do CC) e as jurídicas (art. 40 e seguintes do CC). Esta última possui personalidade jurídica própria e, em regra, não se confunde com a pessoa física.
A personalidade jurídica confere a um ente (pessoa física ou jurídica) a capacidade de ser titular de direitos e obrigações, permitindo, assim, que pessoas físicas e jurídicas exerçam direitos e contraiam obrigações de maneira totalmente autônoma.
Contudo, quando a pessoa física utiliza uma estrutura empresarial com desvio de finalidade (utilização da pessoa jurídica para a prática de atos ilícitos ou fraudulentos) ou quando há confusão patrimonial entre a pessoa física e a jurídica (ausência de separação entre os bens da empresa e os de seus sócios), o patrimônio pessoal da pessoa física pode responder pelas dívidas ou obrigações contraídas pela pessoa jurídica, por meio da desconsideração da personalidade jurídica.
A desconsideração da personalidade jurídica é um importante instrumento que permite que o patrimônio pessoal dos sócios responda pelas dívidas e obrigações contraídas por esta.
O instituto tem amparo no art. 50 do Código Civil (CC), que dispõe em seu caput que “em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”.
Trata-se de medida excepcional e extrema, que deve ocorrer tão somente quando comprovado o desvio de finalidade da empresa ou a confusão patrimonial entre os bens da sociedade e os dos sócios.
Pela lei (art. 50, §§ 1º e 2º, CC), o desvio de finalidade se caracteriza quando a pessoa jurídica é utilizada com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos. Já a confusão patrimonial se dá quando há ausência de separação entre os patrimônios, caracterizada por:
- I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador, ou vice-versa;
- II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto as de valor proporcionalmente insignificante; e
- III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
Ressalta-se que o inverso também é verdadeiro, ou seja, a pessoa jurídica pode responder por dívidas e obrigações da pessoa física quando demonstrados os requisitos do art. 50 do CC. Trata-se da denominada desconsideração inversa.
Embora isso esteja claro, infelizmente, tem-se observado uma má utilização da desconsideração da personalidade jurídica em situações em que, mesmo não havendo comprovação do desvio de personalidade ou da confusão patrimonial, o pedido é deferido e o patrimônio pessoal do sócio é atingido.
Está se tornando cada vez mais frequente – principalmente na seara trabalhista – decisões em que a simples inexistência de bens penhoráveis em nome da empresa é justificativa para atingir o patrimônio pessoal dos sócios. Como no caso do agravo de petição julgado no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 3ª Região, processo 00102051420215030109, em que a ausência de bens da empresa devedora, livres, desembaraçados e suficientes para a garantia da execução atraiu a responsabilização dos sócios.
De acordo com o julgado: “Na seara trabalhista, tendo em vista sua natureza tuitiva, com o propósito de buscar a efetivação de créditos alimentares da parte hipossuficiente da relação de trabalho, o empregado, é desnecessária a demonstração de abuso da personalidade ou desvio da finalidade da empresa (art. 50 do CCB e art. 28 do CDC) (…)”.
Decisões como a acima causam enorme insegurança jurídica, pois desprezam o princípio da autonomia patrimonial, essencial ao funcionamento das relações empresariais. A proteção desse instituto é fundamental para garantir a justiça, a equidade e a confiança nas relações sociais e econômicas. Portanto, é essencial uma mobilização conjunta entre legisladores, juristas e a sociedade civil para reverter essa tendência e fortalecer os pilares que sustentam o Direito.
A organização e o planejamento patrimonial e sucessório, quando bem estruturados, são uma boa opção, visto que, muitas vezes, evitam que decisões equivocadas atinjam o patrimônio pessoal do sócio, construído ao longo de anos ou décadas.
Por isso, é importante que os empresários se protejam de medidas dessa natureza por meio de consultoria jurídica especializada, evitando que a banalização do instituto da desconsideração da personalidade jurídica atinja seu patrimônio pessoal.
Marcio Barbero é sócio fundador da Barbero Advogados.
Bruno César Silveira é head da área de Contencioso e Planejamento Patrimonial da Barbero Advogados.