A cidade de São Paulo e o processo histórico que levou a Pablo Marçal

A ascensão de Pablo Marçal nas eleições paulistanas reflete o desgaste histórico dos políticos e suas falhas na gestão da cidade.

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Estamos na reta final do primeiro turno da confusa eleição para prefeito da cidade de São Paulo. Antes do início oficial da disputa, despontavam nas primeiras colocações das pesquisas o atual prefeito, Ricardo Nunes, do MDB, e Guilherme Boulos, do Psol. O problema é que desde o primeiro debate realizado na TV (Band, 9/8/2024), emergiu na disputa o candidato Pablo Marçal.

Goste-se ou não de Marçal, sua candidatura ganhou tração a ponto de figurar nas primeiras colocações e ameaçar, fortemente, um segundo turno entre Nunes e Boulos, com a possibilidade, nada desprezível, de Boulos ficar de fora.

Mas o que permitiu que Marçal ganhasse tamanha tração na disputa em tão pouco tempo? Muitas análises acabam apontando para o seu conhecimento sobre a utilização das redes sociais, suas bases de seguidores em diversas plataformas e sua maestria com os cortes, mas essas análises não abordam um ponto crucial que permitiu a sua consolidação na disputa: o processo histórico de menosprezo e falta de compromisso dos prefeitos de São Paulo e dos seus partidos com a cidade e a sua população.

Antes de analisar esse processo, que começou exatamente no mandato de Celso Pitta, que foi de 1997 a 2000, eu gostaria de ressaltar um aspecto importante: desde a instituição da reeleição em 1997, nunca um prefeito de São Paulo foi reeleito para um segundo mandato, seja porque abandonou o mandato com um ano e meio para disputar o governo do Estado, como José Serra em 2006 e João Dória em 2018, seja porque tentou a reeleição e foi derrotado nas urnas, como Marta Suplicy em 2000 e Fernando Haddad em 2016.

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1985: Jânio Quadros, PTB, x Fernando Henrique Cardoso, PMDB

Na primeira eleição para a Prefeitura de São Paulo após o Regime Militar, Jânio Quadros derrotou Fernando Henrique Cardoso: 37,53%, 1,57 milhão de votos, contra 34,16%, 1,43 milhão de votos. Os percentuais apresentados são do total de votos.

Essa foi a eleição que entrou para a história por causa da foto que Fernando Henrique tirou antes da eleição, em um gesto ímpar de arrogância, na cadeira de prefeito de São Paulo. Depois que assumiu o cargo de prefeito, Jânio Quadros desinfetou a cadeira onde Fernando Henrique havia sentado. As fotos desses dois momentos podem ser encontradas no Google.

1988: Luiza Erundina, PT, x Paulo Maluf, PDS

Nesta eleição, Luiza Erundina teve 29,84%, 1,53 milhão dos votos, contra 24,45%, 1,25 milhão de votos, de Paulo Maluf, o indefectível, que figurou na lista de procurados da Interpol de 2010 a 2016. Os percentuais apresentados são do total de votos. Essa foi a última eleição para a Prefeitura de São Paulo sem segundo turno.

1992: Paulo Maluf, PDS, x Eduardo Suplicy, PT

Na primeira eleição com segundo turno, Maluf derrotou Suplicy no segundo turno: 58,08%, 2,8 milhões de votos, contra 41,92%, 2,02 milhões de votos. Os percentuais apresentados são de votos válidos. Como essa foi a última eleição sem a possibilidade de reeleição, que seria instituída apenas em 1997, o candidato de Maluf em 1996 foi Celso Pitta.

1996: Celso Pitta, PPB, x Luiza Erundina, PT

Nesta eleição, Pitta derrotou Erundina no segundo turno: 62,28%, 3,1 milhões de votos, contra 37,22%, 1,92 milhão de votos. Os percentuais apresentados são de votos válidos.

Em 1997, o Congresso Nacional aprovou o instituto da reeleição. Pitta poderia ter disputado a reeleição, mas com um mandato marcado pelas acusações de corrupção, ele desistiu de concorrer à reeleição em 2000, já que não tinha qualquer condição de vencê-la. Foi nessa eleição que teve início o processo histórico que levou a Pablo Marçal.

2000: Marta Suplicy, PT, x Paulo Maluf, PPB

Com a desistência de Pitta, Maluf retornou à disputa, vencida por Marta Suplicy no segundo turno: 58,51%, 3,25 milhões de votos, contra 41,49%, 2,3 milhões de votos. Os percentuais apresentados são de votos válidos.

O mandato de Marta Suplicy foi marcado pelas escolas de latão; pela construção de dois túneis que ligam o nada a lugar algum, Jornalista Fernando Vieira de Mello e Max Feffer, cujas construções deram muitas dores de cabeça à população e que não seguiram os projetos iniciais para que fossem entregues antes da eleição de 2004; e as cobranças das taxas de lixo e de iluminação pública.

2004: José Serra, PSDB, x Marta Suplicy, PT

Diante do seu péssimo trabalho, Marta Suplicy foi derrotada por José Serra no segundo turno da eleição de 2004: 54,86%, 3,3 milhões de votos, contra 45,14%, 2,74 milhões de votos. Os percentuais apresentados são de votos válidos.

Essa foi a eleição em que Serra assinou uma carta assumindo o compromisso de que ficaria na Prefeitura até o final do mandato. Um ano e meio depois do início do seu mandato, ele abandonou a Prefeitura para disputar o governo do Estado de São Paulo. Cobrado pelo compromisso assumido, José Serra disse que não havia assinado a carta em cartório, desculpa bem ao estilo do PSDB, fazendo o eleitor de São Paulo de otário. Depois que Serra se mandou, quem assumiu a Prefeitura foi Gilberto Kassab.

A carta assinada por José Serra. Ele rasgou o compromisso que assumiu. Questionado, disse que não havia assinado a carta em cartório e fez que não era com ele. Obs.: já foi mais fácil encontrar essa carta na internet…

2008: Gilberto Kassab, DEM, x Marta Suplicy, PT

Na eleição de 2008, Kassab derrotou Marta Suplicy no segundo turno: 60,72%, 3,79 milhões de votos, contra 39,28%, 2,5 milhões de votos. Os percentuais apresentados são de votos válidos.

Nessa época, Kassab estava surfando em uma batalha contra a poluição visual da cidade, o Projeto Cidade Limpa. Essa batalha deu trabalho, mas não era tão difícil de ser vencida, pois todo o terrorismo da Prefeitura recaiu sobre os negócios legalizados, que podiam ser fiscalizados e multados. Essa eleição marcou o fim de Marta Suplicy, que se deu conta de que depois do seu mandato de 2001 a 2004 ela não seria mais eleita para a Prefeitura de São Paulo.

Kassab “dialogando” com um cidadão paulistano, em fevereiro de 2007, cuja fábrica de placas havia quebrado em decorrência do Projeto Cidade Limpa. Pergunta: por que será que nenhum prefeito de São Paulo luta contra a poluição sonora, principalmente durante a noite, e a poluição do ar da cidade? Por quê?

2012: Fernando Haddad, PT, x José Serra, PSDB

Depois de ter abandonado a Prefeitura em 2006 para disputar o Governo do Estado, que venceu, e de ter abandonado o Governo do Estado em 2010 para disputar a Presidência, que perdeu, José Serra achou que poderia fazer o paulistano de otário novamente. Como Kassab não poderia disputar um novo mandato, coube a Fernando Haddad, apoiado de forma ostensiva pelo, na época, ex-presidente Lula, derrotar José Serra no segundo turno, que achou que o paulistano não tinha memória: 55,57%, 3,38 milhões de votos, contra 44,43%, 2,7 milhões de votos. Os percentuais apresentados são de votos válidos. 

2016: João Dória x Fernando Haddad

Em 2016, depois de um mandato horroroso à frente da Prefeitura, marcado por uma hemorragia de ciclofaixas sem qualquer planejamento e pela instituição de uma indústria de multas de trânsito em São Paulo com o único objetivo de arrecadar recursos, com direito a distribuição pela cidade de irritantes radares no formato de pequenas torres retangulares, que hora eram instalados e hora eram retirados para confundir os motoristas; pela colocação de guardas civis metropolitanos com radares móveis em cima das pontes da marginal para multar motoristas desavisados; e pela redução de limites de velocidade a níveis estúpidos de forma a forçar multas de trânsito, Haddad conseguiu uma proeza inédita. Com uma rejeição monstruosa, ele, apesar de ter o controle da máquina, foi derrotado no primeiro turno com menos votos que o somatório de votos brancos e nulos: Dória, 53,29%, 3,08 milhões de votos, contra Haddad, 16,7%, 967 mil votos. Os votos brancos e nulos somaram 1,15 milhão de votos, 16,64% do total de votos.

Na eleição para o Governo de São Paulo de 2022, Tarcísio de Freitas bateu na tecla de que Haddad havia sido o pior prefeito da história de São Paulo. Um monte de gente apareceu com narrativas mirabolantes para dizer que isso não era verdade e que a Prefeitura de Haddad havia sido muito boa. Ok, mas se o mandato de Haddad havia sido tão bom assim, como foi que ele perdeu no primeiro turno e teve menos votos que o somatório de votos brancos e nulos? Realmente, o mandato de Haddad à frente da Prefeitura foi “excelente”.

Com relação ao Dória, depois de um ano e meio de muito papo, mas muito papo mesmo, e pouca ação, ele largou a Prefeitura em 2018 para disputar o Governo do Estado. Para isso, ele grudou, de forma constrangedora, em Jair Bolsonaro, fazendo de tudo para associar seu nome ao dele, com a dobradinha ganhando um nome, claro, dado por ele: BolsoDoria. Eleito, em pouco tempo ele virou as costas para Bolsonaro, pois achou que seria eleito presidente em 2022. Doria abandonou o Governo do Estado, ganhou as prévias do PSDB, mas no final desistiu, pois nem o partido queria apoiá-lo. Como resultado da fugaz e esquecível carreira política de Dória, o moribundo PSDB não teve, pela primeira vez, candidato à presidência em 2022 e ainda perdeu o controle do Estado de São Paulo, que exercia desde 1995, quando Mário Covas foi eleito governador.

Na Prefeitura, Dória deixou Bruno Covas, que foi diagnosticado com câncer em outubro de 2019.

2020: Bruno Covas, PSDB, x Guilherme Boulos, PSOL

Em 2020, o município de São Paulo teve uma eleição absurda, mas que pouca gente discute esse aspecto. Bruno Covas estava em tratamento de câncer, extremamente debilitado, não tinha condições de governar a cidade por mais um mandato, mas mesmo assim foi para a eleição. No dia 29/11/2020, ele derrotou Boulos no segundo turno: 59,38%, 3,16 milhões de votos, contra 40,62%, 2,16 milhões de votos. Os percentuais apresentados são de votos válidos.

No dia 1º/1/2021, Covas assumiu a Prefeitura para morrer 5 meses depois, no dia 16/5/2021. No seu lugar, assumiu a Prefeitura Ricardo Nunes, um sujeito que não era reconhecido nas ruas e que as pessoas não sabiam o seu nome e nem o seu partido.

No dia 30 de janeiro de 2021, Bruno Covas se mandou para o Maracanã com seus filhos para assistir a final da Libertadores entre Palmeiras e Santos. Em São Paulo, comércios, que queriam abrir, eram fechados pela Prefeitura com cadeados e os jogos não tinham público. Questionado, ele disse que tinha esse direito. Uma pena que o direito que ele teve não valeu para os muitos pais, que moravam na cidade de São Paulo e que morreram na pandemia sem que pudessem assisitir um último jogo no estádio com seus filhos. Três meses e meio depois, ele faleceu.

Conclusão

Não há como saber se Marçal será eleito ou não prefeito de São Paulo, mas o ponto é que ele canalizou uma parte significativa do eleitorado que não se identifica mais com as mesmas figurinhas carimbadas dos mesmos partidos, que vão apenas se revezando, e a forma como eles tratam a cidade. Em um contexto de cartas marcadas, alguém sempre será eleito, mas a questão é que, pela primeira vez em muitos anos, surgiu uma figura de fora que ganhou o apoio de uma parte significativa do eleitorado que não aceita mais esse jogo.

Outro ponto importante é que Marçal é resultado de um erro estratégico do Partido Liberal, Jair Bolsonaro e Valdemar da Costa Neto, que não apoiaram a candidatura de Ricardo Salles à prefeitura e optaram por Ricardo Nunes. Nunes queria o apoio, mas fez de tudo para se distanciar dele, até mesmo com um certo nojo, e uma vez que ele fez isso, de forma reiterada, ele se afastou de muitos eleitores de Bolsonaro. Aqui deveria caber uma profunda reflexão por parte dos responsáveis por essa decisão: você pode até perder uma eleição com uma chapa puro-sangue, mas não perca o seu eleitorado mais fiel. Nesse aspecto, a esquerda teve coerência e foi, mais uma vez, de Boulos. Se ele vai ganhar ou não é outro ponto, mas a esquerda teve a coerência que faltou à direita.

Muito provavelmente, Marçal não tem noção desse processo histórico que fez com que parte do eleitorado de São Paulo o abraçasse, justamente por ter, pela primeira vez neste século, uma opção de voto que não viesse desse jogo e que tivesse chances reais de vencer a eleição.

Mesmo que não tenha essa noção, Marçal tem dito nas últimas semanas uma frase interessante: “O dia da vingança do povo está chegando”. Se ele vai ser eleito, se vai ser um bom prefeito ou se vai ser mais um a abandonar a prefeitura com um ano e meio de mandato, isso fica para depois, pois mais importante que isso é a mensagem contundente que parte significativa do eleitorado está mandando aos políticos, seus partidos, suas pseudo estratégias e a forma como eles veem São Paulo: um mero trampolim para outras coisas.

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