A CPI, os corporativismos e os destinos do Brasil

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General Augusto Heleno no Congresso (foto Câmara dos Deputados)
General Augusto Heleno no Congresso (foto Câmara dos Deputados)

Passados dois anos e meio desde a posse de Jair Bolsonaro, para muitos permanece inconclusivo o debate quanto a se, ou em que medida, este deve ser considerado um governo militar.

É fato que Bolsonaro foi eleito por quase 58 milhões de votos e que esses, em sua vasta maioria, foram dados por civis. Porém, não devemos esquecer que foi o então comandante do Exército brasileiro, o general Eduardo Villas Bôas, quem pressionou publicamente o STF para barrar a candidatura do ex-presidente Lula, envolvendo abertamente as Forças Armadas no andamento do processo eleitoral. Foi a Villas Bôas, também, que Bolsonaro agradeceu pelo apoio de bastidores à sua candidatura.

Desde o início da sua desastrosa administração, foram e continuam sendo militares de alta patente os ocupantes dos seus principais cargos executivos, exceção feita ao Ministério da Economia. Além desses, mais de 6 mil cargos no Governo Federal são ocupados por oficiais militares, segundo as últimas estimativas.

Portanto, resta evidente que os militares foram centrais para a construção da candidatura e para a viabilização da vitória de Bolsonaro, representam um dos principais grupos sociais que (ainda) lhe dão sustentação e que dos seus quadros provém a maior parte dos seus administradores.

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Logo, se este não é um governo militar, é, no mínimo, um governo de militares. Mais exatamente, de ao menos 6 mil deles, ocupantes de cargos de indicação política que escapam ao controle da elite de políticos profissionais. Políticos que os militares consideram, virtualmente sem exceções, incompetentes, corruptos e orientados apenas para os seus próprios interesses. Políticos dos quais jamais esconderam o seu desprezo, como sintetizou ainda em 2018 o general Augusto Heleno, depois ministro do Gabinete de Segurança Institucional: “Se gritar pega Centrão, não fica um, meu irmão”.

Três anos mais tarde, imprensado pelas circunstâncias de um governo em eterna crise, Heleno mudou publicamente de posição. O problema, porém, é que é também deste Centrão, “núcleo duro” desses políticos profissionais, que depende a sobrevivência de Bolsonaro. Até o momento, 126 pedidos de abertura de processos de impeachment já foram apresentados. Sobram motivos para aceitá-los, mas tanto o ex-presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia, quanto o atual, Artur Lira, não acataram nenhum deles.

Conforme noticiado há algumas semanas, Bolsonaro mantém uma base parlamentar mínima concedendo a esse grupo um “orçamento paralelo” de pelo menos R$ 3 bilhões, postos à sua disposição para irrigar obras, outras benesses nas suas bases eleitorais e sabe-se lá mais o que.

Dessa forma, a sustentação de Bolsonaro depende, principalmente, de dois grupos cujos interesses são em geral conflitantes. Pois o amplo espaço que o presidente concede aos militares no seu governo é, automaticamente, subtraído do alcance daqueles políticos profissionais, sempre agindo em causa própria. Assim, Bolsonaro não tem como contemplar todos ou nem mesmo a maior parte deles. Apesar do suborno ao Centrão, partes substanciais dessa elite política encontram-se alijadas do seu arranjo governamental.

Com efeito, é neste contexto que a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga a conduta do governo durante a pandemia da Covid-19 caiu como uma luva para alguns desses excluídos, que parecem ter encontrado nela uma arma potente para recuperar o terreno perdido.

Controlada por maioria oposicionista, presidida pelo senador amazonense Omar Aziz e relatada pelo alagoano Renan Calheiros, oposicionistas confessos, a CPI vem caminhando para responsabilizar militares pelo desastre nacional durante a pandemia. Assim situam-se as convocações do general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, e do coronel Élcio Franco, ex-secretário executivo e seu “braço direito”.

Embora, sem dúvidas, absolutamente necessárias dado fatos públicos e notórios e o curso das investigações, que os indicam como dois dos principais corresponsáveis pela tragédia, elas também visam deslegitimar, frente à sociedade brasileira, a capacidade dos militares para o exercício de cargos públicos cujo controle esses políticos profissionais querem recuperar.

Não por acaso, na última semana, durante uma das seções da CPI, Omar Aziz afirmou que “membros do lado podre” das Forças Armadas estavam envolvidos com “falcatruas” no governo. A reação a essa declaração foi imediata. Em primeiro lugar, a cúpula militar divulgou nota repudiando o que considerou um desrespeito de Aziz à corporação e a sua narrativa “afastada dos fatos […] vil e leviana, tratando-se de acusação grave, infundada e, sobretudo, irresponsável”.

Dias depois, o comandante da Aeronáutica, bolsonarista público e confesso, afirmou que os comandantes militares não emitirão “50 notas” como aquela, invocando “mecanismos dentro da base legal para evitar isso” e declarando que “homem armado não ameaça”. Por fim, como que tentando dirimir quaisquer dúvidas quanto às motivações do grupo, o comandante da Marinha, em publicação numa rede social, declarou que os militares “estarão sempre unidos, em prol do povo brasileiro. Espírito de corpo forte. Corporativismo, jamais!”.

Quem dera fosse esse o caso. Com efeito, já está claro que estamos diante de uma luta acirrada entre dois corporativismos poderosos. Em disputa, milhares de cargos dotados de gratificações e salários generosos e o poder de comandar a distribuição de bilhões de reais em recursos públicos. Enquanto Bolsonaro derrete – talvez irreversivelmente – o que assistimos são duas castas se digladiando publicamente pelo controle do que ainda resta do Estado brasileiro: os militares e os políticos profissionais, pelo menos os excluídos da coalizão bolsonarista.

Como reiterou o comandante da Aeronáutica em clara ameaça golpista, são os militares que manejam as armas e é delas, em última instância, que provém o poder. Porém, o emprego dessas armas é limitado de diversas formas pela Constituição Federal, que o subordina aos civis. Usá-las à revelia de autorização parlamentar ou contra o próprio Congresso Nacional, como parece cogitar o comandante, deporia diretamente contra a presente ordem constitucional.

À luz da nossa história, muitas vezes isso não constituiu obstáculo para que os militares agissem. Todavia, vivemos num momento internacional pouco favorável a golpes desse tipo. Na atual conjuntura, é pouco provável que um governo produzido ou perpetuado por uma quartelada conseguisse acolhida internacional – principalmente tendo Joe Biden na Presidência dos Estados Unidos, pouco afeito ao subordinado tropical de Trump.

Por essa razão, tudo indica que os políticos profissionais saem em vantagem para, usando o enorme poder de coerção moral daqueles que se dizem agir em nome e em defesa da “democracia”, prevalecerem e removerem os “homens armados” do centro da disputa.

Essa disputa, tudo indica, permanecerá indefinida até que saiam os resultados das eleições do ano que vem, que poderão precipitar o país de vez num impasse institucional. Até lá e no meio disso tudo, quem, nesses dois lados em disputa, parece interessado em debater um cada vez mais necessário projeto nacional? Quem parece capaz de propor um projeto de desenvolvimento nacional autônomo, soberano, capaz de tirar o país da entropia e de resgatar as grandes massas do povo brasileiro do desalento do desemprego e da miséria nos quais hoje elas se encontram?

A julgar pelo que estamos vendo, virtualmente ninguém. De fato, para esses militares e políticos profissionais que temos por aqui, tudo parece se resumir a corporativismos e nada mais.

 

Daniel S. Kosinski é doutor em Economia Política Internacional (IE-UFRJ) e membro do Instituto da Brasilidade.

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