A privatização da Previdência Social na América Latina e a submissão ao regime de capitalização individual tiveram início nos anos 1970, no Chile, durante a ditadura de Pinochet, funcionando como laboratório das políticas neoliberais no continente.
No entanto, esse processo foi mais ativo justamente nos países que tiveram o Estado de bem-estar social, a partir dos anos 1980. Infelizmente, esse processo não resultou apenas da ação dos governos neoliberais que se constituíram na Europa, mas também do apoio de setores da esquerda que viram nessa oportunidade uma possibilidade de os fundos de pensão gerarem capital de longo prazo e, ao mesmo tempo, esses trabalhadores participarem da gestão das empresas por possuírem valor expressivo das ações e, dessa forma, comporem o conselho de administração dessas empresas.
Esse processo de privatização de parte da Seguridade Social foi acompanhado pela política de austeridade fiscal, que passou a direcionar parte crescente do fundo público para o pagamento dos respectivos serviços da dívida pública.
No Brasil, os primeiros passos do processo de privatização tiveram início nos anos 1960, com a criação de fundos próprios de previdência complementar, a exemplo da Capemi, que era um montepio militar.
Essa modalidade de privatização, por meio de fundos próprios, inicialmente se expandiu para grupos específicos de trabalhadores do setor privado e das estatais. Em seguida, com a aprovação da Reforma da Previdência de 2003, atingiu todo o setor público e levou à constituição do Funpresp, regulamentado a partir de 2013.
No decorrer desse processo, tivemos o desmantelamento dos regimes de repartição simples nos estados e o surgimento dos regimes próprios de previdência nos estados e municípios, que garantem aposentadoria até o limite do Regime Geral de Previdência Social e oferecem um fundo de previdência complementar para trabalhadores que ganham acima desse teto.
Os riscos do modelo de capitalização da Previdência e o impacto no mercado financeiro
Os regimes próprios, no entanto, passaram a funcionar sob um modelo de capitalização e, dessa forma, se submeteram aos riscos do mercado financeiro, onde se aplicava em ações e em títulos públicos.
Em outras palavras, o futuro das aposentadorias e pensões passou a depender do humor desses mercados, justamente quando se aprofundavam as várias etapas da crise capitalista, como a crise mexicana, em 1995; a crise asiática, em 1997; a crise russa, em 1998; a crise da economia.com, em 2000; a moratória argentina, em 2001; e, especialmente, a crise de 2008, iniciada nos Estados Unidos da América do Norte, provocada pelos bancos e pela farra com os derivativos financeiros.
Além disso, a instabilidade foi se agravando em decorrência dos riscos imanentes ao mercado financeiro, especialmente devido à criação de produtos financeiros e à atuação de instituições financeiras, como o caso do Banco Master e das Lojas Americanas, que ofereciam rendimentos elevados, porém impunham riscos também elevados, que colocavam em xeque o grande volume de recursos dos regimes próprios.
O Banco Master, justamente pelo fato de oferecer rendimentos elevados sem lastro, está correndo o risco de ser liquidado por falta de condições de honrar os compromissos prometidos a 12 regimes próprios, com destaque para o Rioprevidência e o Maceió Previdência, que aplicaram valores elevados em papéis financeiros desse banco.
Interessante observar que o economista-chefe desse banco é um “youtuber” que gravou vídeos atacando o trabalho da Auditoria Cidadã da Dívida (ACD), certamente porque a transparência exigida pela ACD o incomoda.
Em meio à crise e ao risco de quebra do Banco Master, surge o interesse do Banco de Brasília (BRB), banco estatal comandado por políticos do chamado Centrão, tentando incorporar o Banco Master, em processo que, caso a operação não tivesse sido impedida pelo Banco Central, poderia ter levado o BRB a assumir uma dívida advinda de aventuras financeiras do setor privado, comprometendo a saúde financeira desse banco estatal e gerando prejuízo para os contribuintes do Distrito Federal, além de comprometer o pagamento dos salários e a realização de investimentos sociais.
O Rioprevidência — que já tinha passado por uma CPI da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro que apontou várias irregularidades na aplicação dos recursos que garantiriam a aposentadoria da classe trabalhadora do Rio de Janeiro — acaba de informar mais um investimento de R$ 1 bilhão em letras financeiras do Banco Master, mesmo após a recomendação do Tribunal de Contas do Estado para que não fosse feita aquisição desse tipo de produto financeiro.
Isso revela uma possível relação com governadores ligados ao Centrão, que insistem em apoiar investimentos no Banco Master, apesar dos graves riscos já divulgados publicamente.
Esse fato evidencia o indício de que conselhos que definem os investimentos de regimes próprios colocam como critério preponderante a taxa de juros mais elevada e desprezam os riscos correspondentes.
Países que reverteram a privatização da Previdência: lições para o Brasil
Em 2018, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) encerrou um estudo que revelou que, dos 30 países que privatizaram suas previdências, 18 já tinham revertido, ao menos em parte, a privatização.
Foram 13 países na Europa Oriental e 5 na América Latina. São eles: Venezuela (2000), Equador (2002), Nicarágua (2005), Bulgária (2007), Argentina (2008), Eslováquia (2008), Estônia, Letônia e Lituânia (2009), Bolívia (2009), Hungria (2010), Croácia, Macedônia (2011), Polônia (2011), Rússia (2012), Cazaquistão (2013), República Tcheca (2016) e Romênia (2017).
Segundo esse estudo, a reestatização apresentou resultados positivos, com a melhoria do sistema previdenciário, a baixa de custos administrativos, o aumento da cobertura da previdência e o aumento do valor das aposentadorias, em especial para a população mais vulnerável.
A submissão aos riscos do mercado financeiro e suas aventuras com produtos sem transparência e sem lastro tem colocado tanto os regimes próprios como os fundos de pensão em uma situação vulnerável, ameaçando as aposentadorias da classe trabalhadora e as pensões.
Ao mesmo tempo, tenta-se aprofundar novas reformas administrativa e da previdência, que ampliam a precarização do trabalho no setor público e acabam determinando a dimensão da contribuição dos trabalhadores a esses regimes próprios e fundos.
Adicionalmente, prossegue, nos grandes meios de comunicação, a tentativa de demonizar os servidores públicos como determinantes no aumento dos gastos públicos, encobrindo a verdadeira causa do rombo das contas públicas, que está na política de juros altos, estabelecida pelo Banco Central sob a falsa justificativa de combater a inflação.
No Brasil, a elevação de juros não serve para combater o tipo de inflação que temos aqui, que não decorre de uma suposta demanda aquecida, mas tem sido provocada pelo aumento de preços administrados pelo governo, além da elevação de preços de alimentos, principalmente por causa dos privilégios do grande agronegócio de exportação.
O Sistema da Dívida e a relação com a Previdência e os juros altos no Brasil
A prática de juros elevadíssimos tem sido a principal causa da explosão do estoque da dívida pública no Brasil — uma dívida que não tem contrapartida em investimentos no país, como já declarou o Tribunal de Contas da União —, funcionando como o que se denomina Sistema da Dívida.
Esse sistema está no cerne do modelo de acumulação rentista que funciona no Brasil, tendo em vista que é para alimentar ainda mais os rentistas super-ricos, com juros absurdos, que se tenta privatizar a previdência, aplicar arcabouço e teto de gastos sociais, além de avançar com reforma administrativa que desmonta a estrutura do Estado. Tudo isso para isentar os governos da obrigação de pagar as aposentadorias e oferecer serviços públicos à população, visando guardar recursos importantes para o pagamento dos juros do Sistema da Dívida.
É preciso desmascarar o falso argumento que tenta legitimar o Sistema da Dívida sob a alegação de que a dívida pública estaria beneficiando toda a população por igual, já que os fundos de pensão de trabalhadores estariam aplicando seus recursos em títulos públicos.
Essa alegação ignora o fato de que apenas uma ínfima parte do estoque da dívida pública federal está em poder de fundos de trabalhadores, enquanto bancos e super-ricos — inclusive estrangeiros — e mecanismos financeiros espúrios (como a “Bolsa-Banqueiro”) detêm a imensa maioria dos títulos.
A ferramenta da auditoria da dívida, detestada por poderosos e inescrupulosos operadores do mercado financeiro, é capaz de jogar luz sobre todo esse processo, resguardando a segurança da classe trabalhadora e demonstrando os perversos mecanismos que usam a dívida pública para encobrir fraudes e aventuras financeiras à custa do sacrifício da população.
Por isso, mais do que nunca, é preciso lutar pela auditoria integral da dívida pública, com participação da sociedade.
José Menezes Gomes é economista, professor da Ufal e coordenador do Núcleo/AL da Auditoria Cidadã da Dívida (ACD).
Maria Lucia Fattorelli é coordenadora nacional da ACD.
Rodrigo Ávila é economista da ACD.
















