A destruição da nobreza

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Quando o presidente Fernando Henrique Cardoso iniciou o seu primeiro mandato, em 1995, dizia-se que ele teria grande dificuldade para administrar a máquina pública, uma vez que grande parte dos quadros dessa administração era composta por militantes ou simpatizantes de organizações de esquerda ou, tão somente, de não simpatizantes dos pensamentos do presidente.
É verdade que existia, em algum grau, essa aversão do setor público. Nesse instante, foi arquitetado o plano neoliberal de administração dos recursos humanos do setor público, partindo-se do princípio que todos servidores eram desonestos, já que não respeitariam a decisão soberana da sociedade.
Uma das medidas desse plano, que mostra a total falta de escrúpulos, foi a de perseguir aqueles que estavam em cargos de chefia intermediária (não se está falando de diretores) e pensavam de forma diferente deles, os donos da verdade. O discurso neoliberal tinha que ser repetido pelos chefes.
Qualquer funcionário que se declarasse contrário a algum ato do governo era mal visto, quando não perseguido, como bem demonstra o caso do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães que pagou com a perda do cargo por cometer o “delito” de discordar de posições do governo da época sobre a Alca.
Uma medida paralela seguindo a perversa cartilha do neoliberalismo e que atingiu a todos os trabalhadores, não só a máquina pública, consistiu na criação de um exército de desempregados no país, pois, com isso, foi retirada toda a força dos sindicatos e das agremiações de classe. Os trabalhadores que ainda tinham emprego passaram a lutar pela autopreservação, ou seja, reivindicavam de forma comedida e eram modestamente solidários com os colegas demitidos.
Contiveram, também, os salários do setor público, anos a fio, pois precisavam instalar o sofrimento e o medo entre eles, algo análogo às torturas que os ditadores aplicam aos opositores. Na primeira greve dos petroleiros do período FHC, o presidente mostrou o grau da sua maldade ao aplicar as mais severas sanções a um movimento sindical, que nem os militares haviam imposto.
Em órgãos de financiamento público procuraram retirar a força do especialista setorial aplicando o conceito de administração matricial. Técnicos que durante anos acompanharam setores econômicos foram obrigados a julgar projetos de um sem número de setores, diminuindo certamente a qualidade dos julgamentos como um todo. Ouvia-se técnicos dizerem: “Não sei por que estão jogando fora a minha experiência”.
A razão era simples: os governos neoliberais transferem riqueza para grupos de interesse e isso só pode ser feito, sem causar indignação, com a presença de muito poucos. Os especialistas denunciariam as irracionalidades técnicas e sociais, portanto tinham que estar longe. No entanto, consultores externos ao órgão, escolhidos a dedo, com a participação de alguns técnicos cooptados da casa, definiam as prioridades sobre os setores e as empresas, com visões neoliberais.
A compra de consciências ocorreu em estatais ao aumentarem os salários dos gerentes com um índice bem acima do índice dos demais funcionários, não gerentes, e ao condicionarem a subida na hierarquia à defesa aberta dos princípios neoliberais na estatal. Muitos gerentes nomeados passaram a ter posições diferentes das que tinham no passado, assim como muitos técnicos sem cargo passaram a defender também as posições dominantes, para conseguirem ser gerente na primeira vaga.
A liberdade de expressão em quase todos os órgãos foi contida. Os sindicatos e as associações de funcionários foram as trincheiras de resistência do funcionalismo. A classe deveria homenagear os dirigentes dessas agremiações desse período pela sua coragem, uma vez que as retaliações eram ferozes.
Nesse ponto, há a necessidade de uma explicação, pois procuraram associar a liberdade de expressão com anarquia, falta de liderança, “assembleismo” etc., quando, na verdade, não se estava pregando o desrespeito à hierarquia e, sim, a liberdade do debate como parte do processo de decisão e a não perseguição a quem pensasse de maneira diferente. Quando uma decisão era tomada, por pior que fosse, ela era respeitada, até porque não havia outra alternativa.
O incentivo para aposentadorias antecipadas foi algo criminoso, pois dizia-se que o setor público estava quebrado e permitiram, via de regra, os melhores quadros se aposentarem, como se quisessem piorar o funcionamento do Estado. Em paralelo, demoraram, em muitos locais, a fazer novos concursos públicos, propositadamente, para poder justificar as terceirizações de muitas atividades, contratando-se mão-de-obra, na maioria das vezes, pouco treinada e mal paga, mas bastante passiva.
É imperioso abrir um parênteses: o terceirizado ganha mal mas a empresa que vende a mão-de-obra ganha bem. Os que resistiam à tentação das “boladas” da aposentadoria incentivada, se não fossem um dos cooptados, dependendo do órgão, eram maltratados, obrigados a cumprir horários rígidos para não fazer nada, isolados num canto.
Os treinamentos de pessoal na era FHC, excetuando os de assuntos técnicos, tinham sempre o pensamento único incluído. Em determinado banco público de desenvolvimento, teve-se a iniciativa meritória de trazer palestrantes externos para proferirem palestras. Acontece que todos os convidados tinham a mesma visão neoliberal. Os responsáveis por esse ciclo de palestras não leram um poema que descrevia a guerra civil espanhola, do qual não me lembro mais o nome nem o autor, e que dizia em certa altura que as forças do Generalíssimo Franco poderiam matar quantos fossem dos revolucionários, pois “surgiriam da sombra” novos combatentes, uma vez que a razão os criava.
Depois das privatizações, tendo concordado com elas ou não, todos apoiavam a criação de algum órgão que passaria a fiscalizar as ações das empresas privatizadas. Apareceram, então, as agências reguladoras, assim como poderiam ter surgido departamentos na administração direta, com as mesmas incumbências. Mas, o importante é que as agências tiveram a permissão de escolher livremente pessoal sem concurso público, num período inicial, oferecendo contrato temporário de trabalho. Mas, esses contratos têm sido renovados à medida que findam, postergando-se cada vez mais o preenchimento total dos quadros por concurso.
Obviamente, as escolhas têm sido feitas por competência, mas levando em conta também o posicionamento ideológico do candidato. Há uma aparente homogeneidade ideológica, muito estranha, nos empregados de contrato temporário das agências. Mas pode ocorrer também que muitos deles aprenderam, por necessidade de sobrevivência, a não exteriorizar seus pensamentos. A beleza do concurso público é que, alem de selecionar os mais competentes, traz uma diversidade de pensamentos que só engrandece o órgão, à medida que a competência não é privilégio de nenhuma tendência ideológica.
Reconhecemos que as teorias do neoliberalismo e da globalização são estruturadas em raciocínios lógicos. No entanto, muitas das suas premissas são infundadas, como, por exemplo, a que sempre existe concorrência perfeita, o que não se verifica em muitas situações, assim como a que o domínio de mercado exercido por empresas genuinamente nacionais é pior que a existência de concorrência dos produtos dessas empresas com produtos importados, num mercado aberto. Contudo, as ações executadas no governo FHC transcenderam a simples aplicação dessas teorias e fugiram de qualquer explicação lógica. Houve perversidade, com a consequente destruição da nobreza.

Paulo Metri
Conselheiro do Clube de Engenharia.

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