Com maioria no Senado e muito provavelmente na Câmara dos Deputados, Donald Trump terá um maior controle sobre a política norte-americana. Além disso, tudo indica que ele aprendeu um pouco com os erros de seu primeiro mandato e desta vez terá homens de alta confiança nos principais postos governamentais. Há muita preocupação, entre os elementos tradicionais do establishment, que ele reorganize toda a burocracia estatal e construa um Deep State próprio.
A força avassaladora de Trump, comprovada nestas eleições, indica que os donos tradicionais do Deep State podem ter de adotar a máxima do “se não pode com ele, junte-se a ele”. Os grandes jornais, prevendo a vitória do republicano, decidiram não declarar apoio a nenhum candidato, apesar de sua cobertura ter sido claramente anti-Trump e pró-Harris.
Nos últimos meses da campanha, também foi possível verificar um aumento no financiamento da candidatura Trump por grandes corporações, em comparação com o período anterior à entrada de Harris na disputa (embora esta, mesmo assim, tenha recebido o dobro de dinheiro do republicano). As previsões mais recentes dos mecanismos do mercado financeiro também indicavam uma vitória de Trump, contrastando com o empate técnico verificado nas pesquisas de intenção de voto.
Apesar disso, caso o regime político estadunidense se adapte a Trump, seus representantes farão de tudo para colher concessões do presidente eleito. As principais publicações que orientam os formuladores da política externa americana, como a Foreign Affairs, têm publicado artigos alertando para o mal que uma política trumpista pura representaria para os Estados Unidos. Em outras palavras, como o isolacionismo enfraqueceria o sistema imperialista de dominação global.
O caso brasileiro e latino-americano
Contudo, se na Europa e na Ásia a política externa de Trump pode resultar na debilitação do intervencionismo americano, o cenário na América Latina provavelmente não seguirá essa tendência. Claro, o imperialismo está numa fase histórica de decadência, mas, por ser o quintal dos Estados Unidos, o continente tem maiores dificuldades de reagir contra a dominação imperial. As classes dominantes dos nossos países não passam de vassalas de Washington, que, devido à proximidade geográfica, exerce um controle mais efetivo sobre elas do que sobre as de outros continentes.
Somos um dos pontos de menor divergência entre a ala trumpista e a ala “globalista” da burguesia americana. As duas concordam que o Hemisfério deve ser de controle exclusivo dos Estados Unidos. A Doutrina Monroe faz parte do ABC político dessas duas alas. A armadilha da dívida externa escraviza nossos povos sob o jugo do FMI e do Banco Mundial. Os abundantes recursos naturais nos tornam presas imediatas para os grandes monopólios industriais.
Trump tem uma política extremamente favorável à voracidade das grandes petroleiras, e Brasil e Venezuela cheiram a petróleo. Elon Musk, o mais proeminente magnata trumpista, olha para as reservas de lítio de Brasil, Argentina, Chile e Bolívia com uma cobiça indisfarçável (basta lembrar de suas palavras quando do golpe na Bolívia).
Nos últimos anos, os Estados Unidos escalaram a ofensiva sobre o nosso continente. Se Trump, em seu primeiro mandato, adotou uma política relativamente pacifista com relação ao resto do mundo, na América Latina ele quase derrubou os governos de Nicarágua (2018) e Venezuela (2019), além de ser bem-sucedido com o golpe de Estado na Bolívia (2019) e a eleição de um fantoche no Brasil (2018).
Ao mesmo tempo que mantinha o espólio dos nossos países, o protecionismo de Trump (seguido, em muitos aspectos, por Joe Biden) afetou duramente as exportações do Brasil. Ele impôs uma tarifa de 25% ao aço brasileiro, acusando-nos de ser uma “ameaça à segurança nacional dos EUA”. Biden manteve essa medida, e agora todos consideram que as tarifas também prejudicarão a exportação de milho, soja, ferro, biocombustíveis e partes de maquinário.
As transações comerciais com os EUA já tiveram um déficit de US$ 1,1 bilhão em 2023, e a redução das exportações, motivada pelas altas tarifas, deverá elevar ainda mais esse déficit. A política econômica de Trump também deverá elevar os juros e valorizar o dólar, conduzindo ao aumento da inflação no Brasil.
A grande imprensa monopolista brasileira – sucursal dos veículos estadunidenses – já está usando isso para pressionar ainda mais fortemente por um arrocho fiscal, porque os bancos internacionais precisarão compensar as perdas com o protecionismo nos EUA aumentando o espólio dos outros países.
A necessidade de um reposicionamento do Brasil ante eleição de Trump
Se for mantida a política de submissão (que Lula não tem conseguido superar) diante dos EUA, a crise econômica no Brasil vai piorar vertiginosamente. Claro que os primeiros a senti-la (e os que a sentirão mais profundamente) são os pobres, os trabalhadores e os camponeses. Mas os empresários que não pertencem – totalmente – ao seleto grupo de sanguessugas e parasitas antinacionais também serão fortemente afetados.
O Brasil vai presidir o Brics no primeiro ano de mandato de Trump nos Estados Unidos. Uma das principais tarefas do País será avançar com o processo de desdolarização dentro do bloco, iniciado e impulsionado por China e Rússia.
Dentre os seríssimos equívocos do governo com relação ao Brics, está o de optar por um processo mais lento de abandono do dólar como moeda exclusiva de negociação. Diante da nova realidade, isso terá de ser revisto e revertido, porque a redução e – oxalá – o fim da dependência do dólar é uma necessidade imperativa para qualquer nação que pretende ser soberana.
Com efeito, a presidência brasileira do Brics em meio ao relacionamento econômico crescentemente negativo com os EUA de Trump abre uma oportunidade imperdível de distanciamento dessa dependência quase escravagista. Ao ver dificultada a exportação de soja para os EUA, por exemplo, o Brasil pode orientá-la para a China. O aço também pode ser dirigido para Emirados Árabes e América Latina e Caribe, grandes importadores do Brasil.
Além do Brics, abre-se também uma chance de fortalecimento da integração latino-americana através dos mecanismos regionais como a Celac e o Mercosul (desde que a política desse organismo seja reorientada para os interesses nacionais).
Agora que os democratas tomaram uma surra e foram escorraçados da Casa Branca, do Congresso e do Senado, pode ser que o presidente Lula também se sinta menos amarrado às suas pressões, volte atrás nos ataques do governo à Venezuela e à Nicarágua e busque retomar as boas relações com os dois países, o que seria vital para o fortalecimento do Brasil e da região diante da ofensiva que virá.
Porque se o governo continuar com suas hostilidades contra os países irmãos, estará objetivamente aliando-se a Donald Trump. Isso vai deixar claro para todos os ingênuos dirigidos pela Globo que o ataque à Venezuela não passa de um alinhamento à extrema-direita nacional e internacional.
Aqui entra um ponto delicadíssimo que merece profunda reflexão de Lula e do PT. A vitória de Trump impulsiona os instintos golpistas de toda a oligarquia latino-americana e, particularmente, da extrema-direita, ainda em crescimento. Ela não fica apenas animada e motivada, mas vai também receber apoio material para desestabilizar os governos minimamente nacionalistas da região. Se Javier Milei já demonstrou ser a ponta de lança da ofensiva imperialista na América Latina, com Trump no poder nos EUA essa parceria vai crescer.
A pressão sobre o Brasil vai dobrar. Jair Bolsonaro acaba de declarar que a eleição de Trump “é um passo importantíssimo” para ele mesmo voltar ao governo – e, se não for possível, alguém apoiado por ele. Mas o capitão reformado não escondeu suas esperanças no apoio do novo governo dos EUA: “Acredito que o Trump gostaria que eu fosse elegível.”
Demonstrando sua disposição apaixonada de servir novamente ao imperialismo americano, como se estivesse balançando o rabinho para o dono, Bolsonaro disse que “sabe o seu lugar”: “Estou para ele como o Paraguai está para o Brasil.”
É tão claro como a água que a oposição bolsonarista vai tentar tirar o máximo proveito do fato de Trump assumir o governo para prender ainda mais o Brasil sobre o colo do Tio Sam. Porque, embora Trump não seja um representante típico do sistema imperialista americano, os bolsonaristas – amantes da bandeira americana – o veem como o grande símbolo do poder e da força dos Estados Unidos, que devem reinar eternamente sobre a face da Terra. No Congresso brasileiro há muitos exemplos dessa vassalagem, a começar por Eduardo Bolsonaro, que esteve abraçando Trump em Mar-a-Lago.
Mas os agentes dos EUA estão espalhados por todo o Congresso e também pelos governos estaduais, prefeituras e todos os órgãos de poder no Brasil. Lula e o PT terão de enfrentá-los de maneira contundente, o que significa abandonar as alianças que fazem até mesmo com os próprios bolsonaristas – o PT apoia 52 prefeitos que também são apoiados pelo PL.
A imprensa está aproveitando tanto o resultado das eleições municipais quanto o das americanas para fazer campanha por um governo de centro, ou seja, da direita oligárquica neoliberal e lacaia dos EUA – ou de uma frente ampla à qual Lula se submetesse com medo do espantalho do bolsonarismo.
Mas essa quinta coluna, que também está dentro do governo, é tão agente do regime americano quanto os bolsonaristas, por isso seus ataques retóricos a Trump ou a Bolsonaro não devem ser mal interpretados como nacionalismo. Uma deposição de Lula (seja nas eleições ou não) pode servir tanto aos interesses de Trump como aos do establishment imperialista.
A conclusão, mais uma vez, é a de que o governo Lula ainda pode reduzir a dependência brasileira do imperialismo americano, aproveitando-se do enfraquecimento do Deep State e do regime como um todo com o isolacionismo de Trump. Mas, para isso, terá a obrigação de combater os agentes dos EUA no Brasil, que poderiam se unificar para evitar que o Brasil se afaste dessa dependência.
Eduardo Vasco é jornalista especializado em política internacional, foi correspondente na guerra da Ucrânia e escreveu os livros-reportagem O povo esquecido: uma história de genocídio e resistência no Donbass e Bloqueio: a guerra silenciosa contra Cuba.