A formação humana e a crise estrutural brasileira

A trajetória do homem e a construção inacabada do Brasil em um cenário marcado pela submissão global e pelo desafio da emancipação tecnológica

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Formação e crise brasileira
Foto de Eugene Zhyvchik na Unsplash

Todos os povos têm sua origem na África; mais especificamente na depressão de Afar, no leste africano, onde se encontra o Planalto da Etiópia. Ali foi encontrado, no início da década de 1970, o fóssil denominado Lucy, um Australopithecus afarensis, com idade próxima a 3,2 milhões de anos, peso estimado em pouco mais de 30 kg e 1 metro de altura, porém com evidências de dente siso, pelo que lhe foi atribuída a idade adulta.

Os antropólogos identificam que foram as condições de temperatura e de umidade, que lá existiam neste período quaternário da Era Cenozóica (mais de 3 milhões de anos), que permitiram naquela região a evolução dos grandes primatas para o que se denomina “macaco do sul” (australopiteco). Lucy foi o primeiro achado.

Lucy deixou de ser o esqueleto de hominídeo mais antigo após a descoberta, também na Etiópia e na mesma década de 1970, de outro fóssil, da espécie Ardipithecus ramidus (macaco do solo), que viveu há 4 milhões de anos. Este fóssil tinha a capacidade craniana de 410 cm³, ou seja, três vezes menor do que a do Homo sapiens, e também inferior à da Lucy, estimada em 500 cm³. Hoje não há dúvida que a evolução no reino animal levou ao surgimento do homem na África.

Da saída da África até sua fixação pelo mundo, o ser humano mudou fisicamente e ganhou novos conhecimentos, enfrentando obstáculos de toda ordem. Isso é perfeitamente demonstrado pelas diversidades da compleição física e cognitiva do ser humano, que foram se formando ao longo de centenas de milhares de anos, pelo globo terrestre, a partir do enfrentamento das condições térmicas, ecológicas, ambientais e geográficas deixadas pelo término da última glaciação (Würn, cerca de 150 mil anos) e do surgimento dos montes e lagos, das cordilheiras e oceanos.

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A dispersão e diferenciações dos ‘Homo sapiens’

Estima-se que o homem ficou transitando pela África por uns 30 mil anos antes de iniciar sua dispersão pelo mundo. E que o mundo que foi desbravando também mudou e muito desde então. Mudaram pelas ações das placas tectônicas, pela formação e transformações de acidentes geográficos e, consequentemente, das percepções humanas sobre a natureza que o envolvia.

O antropólogo estruturalista Claude Lévi-Strauss (1908-2009), no “Finale” de sua obra Mitológicas (1964), trata do uso do pronome “nós”. Afirma Lévi-Strauss: “O ‘nós’ de que o autor não quis se afastar não era apenas ‘de modéstia’” (na tradução de Beatriz Perro-ne-Moisés, para Cosac Naify, SP, 2011, da Édition Plon, Paris, 1971).

“Traduzia também a preocupação mais profunda de fazer do sujeito o que, numa tal empresa, ele deveria tratar de ser, se é que não o é sempre: lugar insubstancial oferecido a um pensamento anônimo para que ali se desenvolva, ganhe recuo em relação a si mesmo, recupere e realize suas verdadeiras disposições e se organize exclusivamente em função das exigências de sua própria natureza”.

Em outras palavras, após anos de convivência com realidades humanas diferentes, com naturezas diversificadas, impregnando sua vida e seu pensar, o “homo” exprime uma coletividade. Um conjunto de fatos que respondiam pelo que sua mente suportava e compreendia. O “nós” das reflexões era efetivamente plural, soma de visões e conhecimentos de uma coletividade, no mínimo de duas pessoas, num período de tempo e de referências.

Bronislaw Malinowski (1884-1942), em Myth in Primitive Psychology (1926) (na tradução de Isabel Straasman e Héctor Rosenvasser para Editorial Paidós, Buenos Aires, 1949), referindo-se à cultura melanésia, propõe-se demonstrarquão profundamente entra na vida daquela cultura a tradição sagrada, o mito, e quanta força rege seu ordenamento moral e social”. Ou como afirma Malinowsky: “A conexão entre a palavra, o mito, o relato sagrado, o rito, os fatos morais, a organização social e as atividades práticas da tribo”.

Darcy Ribeiro (Os Índios e a Civilização, 3ª edição, Editora Vozes, Petrópolis, 1979) afirma que “os estudos de aculturação focalizam os fenômenos culturais decorrentes do estabelecimento de contato entre entidades étnicas. Na sua formulação original, esses estudos se restringem ao exame de contatos diretos e continuados, sendo o processo concebido como necessariamente bilateral e explicado em termos de adoção seletiva de elementos culturais estranhos. Prontamente se verificou a necessidade de incluir no âmbito da análise toda e qualquer ordem de contato interético; e de considerar as situações em que o processo era unilateral ou, ao menos, em que não afetava necessariamente as duas etnias em confronto”.

Seguindo o mestre, iniciamos esta análise examinando o mais elementar elemento de interação, quais sejam os símbolos de toda e qualquer comunicação.


Os primeiros registros de comunicação

Muito provavelmente a criação de hieróglifos, pictogramas e alfabetos reduziram a possibilidade de os seres humanos acessarem diretamente a realidade, sem qualquer intermediação, sem véus e sem máscaras. Esta já lhes chegava conforme as possibilidades que a escrita, qualquer escrita, lhes proporcionasse o entendimento. E parece óbvio que alguém deveria deter o poder de definir esta escrita, fazer com que ninguém o contestasse, e a escrita servisse também para estabelecer e manter um poder.

Os hieróglifos, palavra grega que significa escrita sagrada, já nos alimentam sobre uma destas compreensões. “Esses símbolos eram provavelmente usados para registrar informações econômicas, políticas e sociais, e foram gradualmente refinados e sistematizados”. Neste conceito o final é marcante, pois não admite que a escrita seja neutra, mas tenha sempre objetivo e que este esteja ligado a algum poder.

A arqueologia nos informa que houve três centros significativos de construção civilizacional nos quais surgiram as escritas. No extremo oriente, a escrita chinesa, com seus ideogramas (símbolos que representam conceitos), é a mais antiga e influente forma de expressão, com raízes que remontam há cerca de 4 mil anos.

A escrita cuneiforme, desenvolvida pelos sumérios na Mesopotâmia (Oriente Médio), por volta de 3.500 a.C., é também considerada das formas mais antiga de escrita. A escrita cuneiforme utilizava caracteres em forma de cunha para representar sílabas e palavras em tabletes de argila.

A escrita hieroglífica egípcia é outra das mais antigas, por volta de 3.200 a.C. com raízes no Antigo Egito, na África. Quanto às representações, os hieróglifos, no Império Médio, considerado mais completo, amadurecido, que nos chegou nas inscrições que atravessaram milênios, contou com 900 distintas representações. Já a escrita cuneiforme chegou a dispor de 2 mil sinais, mas sua aplicação ficou reduzida a cerca de 400.

Notáveis são os pictogramas chineses. Foram identificados desde a Dinastia Shang (1.600 a.C. – 1.046 a.C.), sendo sua caligrafia um estudo a parte na comunicação escrita deste idioma. Estima-se a existência de 50 mil pictogramas, dos quais 4 mil são necessários para comunicação cotidiana e, geralmente, são ensinados nas escolas uns 8 mil. Não existem neles expressões com artigo definido, que também inexistem na correspondência pictográfica. Outra dificuldade são os sons. Há cinco sons que alteram o significado dos pictogramas. Por exemplo, um som agudo que acompanha sua emissão do início ao fim, ou um que inicia grave e termina agudo ou um que é neutro em toda extensão da emissão.

A China é dos poucos países que já eliminou o analfabetismo. Pode-se compreender que tem sido um povo educado para triunfar. E esta educação tem somente 75 anos, ocorrendo simultaneamente com guerras, fome e lutas internas. Foi também a China, ainda analfabeta, que entregou, na Idade Média europeia (aproximadamente do século 5 a.C. ao 15 d.C.), a tecnologia que permitiu à Europa dominar as Américas e colonizar todos os continentes com seus idiomas e valores que a enriqueceram e, excepcionando os Estados Unidos da América (EUA), sem qualquer retribuição.

Vemos, portanto, que as formas de expressão dos idiomas já contêm restrições que levam a identificar conceitos de interesse do poder que os ensina e obriga sua reprodução sem qualquer modificação que será sempre considerada incorreta. Os meios de transmissão de conhecimentos e das realidades já contêm o processo de submissão, que os classificará em colônias e metrópoles ou colonizadores.


A doutrinação dos alfabetos

Outra manifestação comunicacional surgiu dos alfabetos, sendo os semíticos o mais antigo, por volta de 1850 a.C.. A base do alfabeto foi fonética, baseada numa ordenação dos sinais fenícios. Estes eram representados sucessivamente pelo boi (alp’), pela casa (bet), pelo bastão (gaml), pelo peixe (digg), pela excla-mação hurra (hall, hll), pelo gancho (waw), pela algema (ziqq), pelo pátio (het), e, certamente, o leitor já identificou o alfabeto hebraico por suas primeiras letras: aleph, beth, ghimel, daleth, hê…

Os alfabetos ocidentais, aí incluídos os do Oriente Médio, foram constituídos a partir do fenício: aramaico, hebraico, grego, siríaco, árabe e o latino. Também os sinais fenícios influenciaram as escritas orientais, como o tibetano e o coreano. Para o ocidente, a mais profunda e duradoura expressão escrita e fonética vem do grego, constituído por volta do século 8 a.C., que se diferencia do fenício pela igual valoração de consoantes e vogais. Nenhuma palavra fenícia tem início por vogal, o que já ocorre no grego.

Se alguém duvida da importância das palavras, de suas formas de expressão para a cognição das pessoas, o estudo das expressões humanas, em suas diversas modalidades, demonstrará uma hierarquia que será transposta para as relações sociais. A própria construção das frases, o modo de pronunciar as palavras, há evidente exclusão de grupos sociais, o estabelecimento de uma hierarquia social.

Por conseguinte, não se limita ao conteúdo, mas pela própria forma da comunicação, nos dias atuais como ainda na origem das espécies, somos induzidos à segregação. Exige-se todo esforço, em especial na educação, para superarmos este condicionamento e organizarmos verdadeiramente um país para todos.

A crise que acompanha o Brasil tem origem na própria formação do homem. Não há atualmente, no século 21, qualquer partido ou associação política nacional que tenha desenvolvido um projeto de independência que permita o Brasil ser brasileiro para desenvolver sua sociedade harmoniosa, solidária, produtiva, consciente e pacífica.

Agrava a situação atual o domínio do pior da sociedade, a plutocracia financeira e o desprezo pelo trabalho; a glorificação da especulação, do jogo. Mas este “veneno cósmico”, que abarca quase o mundo inteiro, nos faz ainda mais responsáveis por nossa própria luta pela independência, como não houve ainda exemplo histórico.

Voltados para o Brasil, precisamos entender nossa formação como seres humanos e as especificidades da formação nacional. Precisamos também entender que devemos construir uma sociedade nacional para o século 21, o que significa a capacidade decisória sobre as tecnologias fundamentais para autonomia neste momento histórico.

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