O leitor pode pensar que Cuba é o último lugar onde se pode refletir sobre a globalização. Trata-se de um erro. Há três anos reúnem-se em Havana em torno de 1000 economistas do país e de várias partes do mundo para, sistematicamente e abertamente discutirem os problemas de desenvolvimento numa época de globalização.
E esta discussão ocorre com a presença e sob a cuidadosa observação do presidente do país, Comandante Fidel Castro. Isto permite um confronto das questões teóricas e acadêmicas com a experiência e uma prática que acumula talvez a mais ampla informação e reflexão sobre o mundo contemporâneo.
Este ano o programa teve início com uma demonstração de pluralismo teórico raramente visto. Três conferências de uma hora e longos debates posteriores foram a base da primeira sessão. Antonio Ocampo, o secretário geral da Cepalc, fez um balanço crítico dos últimos vinte anos demonstrando a baixa taxa de crescimento, o aumento da concentração e da desigualdade social, o crescimento da economia informal e da pobreza da região.
Face a tais resultados trata-se de buscar novos mecanismos de desenvolvimento e de gestão econômica. O secretário geral Ocampo delineou uma sofisticada proposta de novas categorias de análise e orientação de políticas, com forte influência Keynesiana e estruturalista que poderia dirigir a política econômica dos governos latino-americanos.
Pablo Gonzales Casanova apresentou, a seguir, sua pesquisa sobre exploração, expropriação e transferências dos excedentes produzidos na região. Após demonstrar a dificuldade de incluir tais questionamentos no mundo acadêmico e no debate econômico e político, o grande mestre das ciências sociais documentou, com dados das organizações internacionais, as gigantescas e crescentes transferências de recursos gerados na região para os países centrais.
O comércio desigual, a venda de serviços e a transferência de lucros e pagamento de juros supera de forma colossal as entradas de capital de ajuda internacional. Isto explica não apenas a contenção do crescimento como também o aumento da miséria e o crescimento da concentração e da desigualdade. Oeconomista norte-americano Robert Solow, ex-assessor do Presidente Kennedy, fez uma exposição bastante didática dos princípios convencionais que orientam o desenvolvimento econômico, segundo os economistas neoclássicos.
Sua influência Keynesiana e sua definição política dentro do liberalismo progressista norte-americano não deixou de contrastar com a visão crítica de Pablo Gonzales Casanova e mostrou-se demasiado formal face à experiência e a riqueza e complexidade do enfoque de José Antonio Ocampo.
Porém não há dúvida de que o confronto de enfoques tão diferentes, apresentados com alto nível técnico e intelectual despertaria, como de fato ocorreu, um amplo debate de idéias e de políticas. Economistas das mais variadas origens intelectuais, políticas e filosóficas fizeram intervenções nos debates, exigindo precisão por parte dos opositores.
Era impossível deixar de reconhecer as debilidades do enfoque neoliberal, do qual todos se afastaram, inclusive o economista norte-americano, que encerrou sua resposta insistindo que aquilo que pleiteava nada tinha a ver com o neoliberalismo. De fato, sua ênfase quanto ao pleno emprego, ao crescimento e à distribuição da renda não permite classificá-lo como um neoliberal. Porém a insistência por rigor fiscal, livre mercado e livre intercâmbio poderia o aproximar das preocupações da doutrina neoliberal.
Seria impossível resumir a riqueza das apresentações e debates que se confrontaram, nas comissões que funcionaram no segundo dia. De fato, o momento mais interessante do encontro foi a mesa redonda sobre o último livro do Banco Mundial sobre a “segurança econômica”, no qual a presença dos simplismos do enfoque neoliberal era evidente.
Trata-se de diminuir os impactos negativos das políticas neoliberais sobre a segurança da economia, diminuindo as oscilações produzidas pelos ciclos econômicos e os efeitos de suas variações sobre as pessoas, particularmente sobre os pobres.
Após a apresentação do livro por três funcionários do segundo escalão do Banco Mundial, Guillermo E. Perry, vice-presidente para América Latina, Andrés Solimares e Michel Gavin, tiveram início os comentários de Arturo Muerta, da Unam, Orlando Caputo da Universidade Arcis, dos economistas cubanos Alfredo Gonzalez ligado às questões de planejamento e Oswaldo Martinez, diretor do Centro de Econômica Mundial.
Foi um bombardeio de críticas contundentes que revelaram a debilidade intrínseca do pensamento neoliberal. Elas foram articuladas a partir do plano teórico, condenando o formalismo desse enfoque, passando por suas debilidades metodológicas, baseando-se em definições precárias para organizar dados que representam uma falsa realidade, até no plano macroeconômico, condenando suas receitas de política, que ignoram totalmente as especificidades do crescimento da região e a necessidade de incorporar o conceito de sistema mundial e economia mundial.
É interessante notar que todos os detalhes do debate e inclusive as questões vindas do plenário foram totalmente transmitidas pela televisão cubana durante dois dias. O governo cubano parece estar colocando em prática o novo princípio de apoiar a revolução no desenvolvimento da consciência e do conhecimento.
Nos últimos dias o debate continuou com a participação da OIT, que apresentou um balanço impressionante sobre o aumento do desemprego e da pobreza em escala internacional, concomitantemente a distribuição negativa da inclusão.
A OIT apresentou seu conceito de emprego digno e colocou na mesa de discussão a questão fundamental do pleno emprego como princípio reconhecido pelas Nações Unidas, que não é respeitada pelos governos integrantes e pelos bancos e instituições internacionais do desenvolvimento.
O Banco Interamericano apresentou algumas intenções de facilitar a ação das pequenas e microempresas. Tratavam-se, porém de conceitos gerais, sem muita aplicação.
Nesses casos a qualidade das exposições não tem tanta importância. O mais importante é o fato de que as instituições internacionais, que se recusam a escutar a voz do pensamento progressista e se fecham, em geral, em círculos conservadores, se abriram a um debate com economistas progressistas de vários matizes.
No debate ficou clara, de um lado, a debilidade do pensamento neoliberal e o esforço de algumas instituições internacionais para superar este enfoque e abrir-se a um debate que abra caminho a verdadeiras soluções para questões que se converteram em problemas aparentemente insolúveis. E de fato o são, sob o domínio das forças políticas que mandam no atual cenário internacional.
A existência de reuniões como estas, ao lado de grandes mobilizações, como a que se realizara uma semana antes em Porto Alegre, Brasil, demonstram que há uma vontade política atuando na arena internacional. E tudo indica que esta vontade começa a provocar reações, inclusive nas organizações internacionais, apesar de sua insensibilidade institucional.
A verdade é que a ciência econômica e grande parte das ciências sociais se deixaram seduzir pelo enfoque neoliberal que se refugiou em um plano formal totalmente afastado da realidade e colocado a serviço de posicionamentos filosóficos próprios do século XVIII, quando a burguesia nascente confiava totalmente no poder do individualismo possessivo. Manter este enfoque de capital financeiro e dos grandes monopólios internacionais e globais é uma evidente barreira ao avanço da humanidade.
Esta foi a tese que defendemos e nossa locução na sessão de encerramento desse III Encontro Internacional de Economistas sobre Globalização e Problemas do Desenvolvimento.
É particularmente interessante notar que em nenhum lugar do mundo se poderia apreciar um debate tão amplo e tão democrático. Esta foi a impressão geral dos participantes, que queremos transmitir a nossos leitores.
Há que se parabenizar Cuba, que consegue desenvolver um seminário desse nível dentro de todas as suas dificuldades explicadas em detalhes em um painel sobre a economia cubana, que contou com a presença de quatro ministros e do próprio presidente Fidel Castro, que apresentou um quadro impressionante dos dramas vividos pelo povo cubano e a precariedade das respostas possíveis, em seu discurso final, de seis horas.
Parece incrível que Cuba tenha conseguido sobreviver à queda da URSS, com a qual havia desenvolvido uma tão importante cooperação, a qual sempre foi apresentada pela imprensa e pelo pensamento conversador como uma ajuda desproporcionada e fantástica. Trata-se de uma das mais generosas ações produzidas pela sociedade socialistas da URSS, além de seu colossal sacrifício para salvar a humanidade do nazismo.
Mas Cuba superou os momentos mais difíceis daquilo que chamam o “período especial”. Têm ainda tremendas dificuldades pela frente, mas há que se saudar, com simpatia, o orgulho de seus dirigentes em ter ultrapassado tremendas dificuldades sem abandonar seus ideais. Ao contrário, Cuba ampliou a participação internacional de seus médicos e mantêm um conceito de cooperação e solidariedade que não se encontra em outras partes do mundo.
Theotônio dos Santos
Chefe da Assessoria Especial para Relações Internacionais do Estado do Rio de Janeiro