O ano de 2024 abriu, deixando inalteradas as principais polêmicas internacionais que caracterizaram o ano passado. Atualmente, existem 55 conflitos armados ativos entre Estados no mundo, dos quais oito atingiram o nível de guerra e 22 foram internacionalizados, o que significa que uma ou ambas as partes receberam apoio militar de um estado externo.
Muitos desses conflitos não recebem a mesma cobertura dos meios de comunicação, mas têm um impacto devastador nas sociedades que os sofrem há décadas. Guerras que definem 2023 como o ano com o maior número de conflitos desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), conforme denunciado por Volker Turk, Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (Acnur), à margem de uma coletiva de imprensa em Genebra, dezembro passado.
Segundo as Nações Unidas, nos conflitos contemporâneos, até 90% das vítimas são civis, especialmente mulheres e crianças. As mulheres, em particular, podem sofrer formas específicas e devastadoras de violência sexual, por vezes utilizadas sistematicamente para atingir objetivos militares ou políticos.
Policrise em andamento
Há guerras que dividem (Rússia/Ucrânia e Israel/Gaza) e depois a “grande fragmentação” da ordem mundial, tema amplamente debatido e fruto de um 2023 que viu surgirem novas crises e pontos de ruptura, contribuindo, de forma forte, para revigorar tendências e colisões na política internacional. Da competição global pelo controle de setores estratégicos à crescente polarização que está a desunir o Ocidente, da paralisia – de fato – das instituições multilaterais (num mundo multipolar) à afirmação de novos atores do “Sul Global” que são cada vez mais “free hitters”, desligados da lógica ocidental, até conflitos novos e menos novos no Médio Oriente e em Nagorno-Karabakh, com o impasse na Ucrânia e no Sul do mundo a avançar demograficamente e economicamente.
E depois a inteligência digital, a inteligência artificial e as sociedades que mudam a taxas cada vez mais dinâmicas em comparação com os paradigmas do século 20. Um mundo cada vez mais incerto e fragmentado.
Partindo do último conflito, por ordem cronológica, é claro que a primeira questão diz respeito à guerra em Gaza: conseguiu ou não unir a frente dos estados árabes ou está a contribuir para criar mais divisões? Analisar as consequências do conflito em curso entre Israel e o Hamas é muito difícil, sem o dramático número de mortes (mais de 20 mil, incluindo mulheres e crianças). É claro que as consequências “externas” dependerão de “como” a guerra termina.
O primeiro ponto a abordar é se este conflito uniu ou não a frente fragmentada e volátil dos estados árabes, além do Irã e da Turquia. Após a condenação unânime do ataque de 7 de outubro, houve duas reações: uma mais decisiva, que condenou Israel como uma potência ocupante neocolonial face à complexa situação palestina, e outra que reconheceu a posição de Israel, reconhecendo ao mesmo tempo a tragédia da situação palestina.
A primeira reação, apoiada pela Argélia, Tunísia, Líbia, Síria e Iraque; enquanto o segundo (posição dos Estados árabes “moderados”) dos Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Egito, talvez Catar e Marrocos. O Irã, com seus aliados como o Hezbollah, os Houthis iemenitas e as milícias xiitas do Iraque e da Síria, tem uma posição de oposição a Israel, enquanto a Turquia, sempre cuidadosa em mover-se com equilíbrio em três continentes, equilibrando interesses e oportunidades, mostra uma forte posição contra a reação de Israel, mas ao mesmo tempo tem o cuidado de não minar as ligações econômicas e comerciais estabelecidas nos últimos anos com Israel.
O que acontecerá com os Acordos de Abraham que estavam prestes a obter – milagrosamente – a adesão da Arábia Saudita? O bombardeamento de Gaza tornou eticamente impossível à elite saudita juntar-se a Israel, e não terão outras adesões de Estados árabes, mas isso não implica o “fim” do processo de assinatura dos Acordos. O Egito é outro ator regional que corre maior risco e está sujeito à pressão israelita sobre a população de Gaza para se deslocar para sul, em direção à fronteira egípcia. Crise humanitária que poderá causar agitação interna no Cairo. A guerra contribuiu então para o ressurgimento do islamismo em muitos países, um fato que também envolve diretamente o Ocidente. Muito dependerá de quando e como for alcançado um acordo de paz. Sim, mas será um acordo duradouro?
2024 será também um ano eleitoral, nos Estados Unidos, claro, mas também na Rússia, onde Vladimir Putin se prepara para as eleições presidenciais de março próximo. Escalada militar pós-eleitoral? O outro conflito divisivo, entre a Rússia e a Ucrânia, está prestes a entrar no seu segundo ponto decisivo, com o número total de soldados ucranianos e russos mortos ou feridos desde o início da guerra a aproximar-se dos 500 mil, segundo o New York Times.
Em março, Putin renovará a sua legitimidade reafirmando a sua “operação especial”, uma aclamação muitas vezes coercitiva e sem alternativa, mais semelhante à veče medieval de Novgorod (assembleia popular) – de acordo com o Instituto de Estudos Políticos Internacionais – do que às eleições competitivas modernas.
O que esperar? Também aqui, apesar da lealdade da população, teremos de ter em conta não levar à exaustão um povo (o russo) atento às comodidades de um estilo de vida já estabelecido. É por isso que provavelmente será mais útil para Putin, mesmo depois das eleições, continuar a guerra “fundamental” sem o envolvimento físico da maioria, mas através de conteúdos ideológicos que fortaleçam o seu projeto imperial de expansão das terras russas.
Putin, então, não precisará mudar a sua linha de política externa, entre uma Europa cada vez mais fragmentada (com alguns países caminhando para posições de direita) e conflitos internos nos EUA; provavelmente será complicado manter a ajuda militar e financeira à Ucrânia. Outra questão é: será a Ucrânia forçada a sentar-se à mesa de negociações? Ambos os lados provavelmente já estão perdendo esta guerra.
A ascensão do Sul Global
Por último, mas não menos importante, entre os temas de que ouviremos falar em 2024, a ascensão do Sul Global, uma questão fascinante que representa, sem dúvida, um ponto decisivo histórico no campo da política internacional. A centralidade do Ocidente nos assuntos mundiais, uma percepção muitas vezes distorcida da realidade por parte do Norte global, tem estado em declínio há anos e sugere um importante ponto de viragem na política global.
O termo “Sul Global” define principalmente as condições económicas e políticas internacionais, em vez de uma localização geográfica, incluindo nações em desenvolvimento na América do Sul, África e Ásia.
Qual seria, então, a ideia do Sul Global? A ideia está cada vez mais ligada aos esforços individuais ou coletivos dos países em desenvolvimento para moldar os resultados internacionais e uma participação mais equitativa nos processos de tomada de decisão globais. Nos últimos anos, o conceito de Sul Global tem apresentado uma prerrogativa cada vez mais geopolítica. Vários países como a Índia, a África do Sul e o Brasil têm perseguido objetivos de médio e longo prazo ao “sair” de alinhamentos baseados na ideologia ou na política dos blocos.
Um exemplo desta política foi a oposição à adoção de sanções contra a Rússia desejadas pelos países do Norte Global. O não alinhamento, portanto, além da clara evolução de agrupamentos específicos como os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) que expandiram a sua adesão ao Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Moeda comum e redução da dependência do dólar americano e do sistema de pagamentos Swift, estas são as propostas.
Outros países, como o México, a Turquia e a Indonésia, estão próximos dos Brics, mas optaram por impor a sua liderança regional como potências médias seguindo caminhos diferentes. São países que dão voz ao seu ceticismo em relação à concorrência agora cristalizada entre os Estados Unidos e a China. E os outros? Eles estão lá, sim!
Edoardo Pacelli é jornalista, ex-diretor de pesquisa do CNR (Itália), editor da revista Italiamiga e vice-presidente do Ideus.