A Guerra do Vietnã como nunca vimos

Minissérie documental e reedição do livro do jornalista brasileiro ferido no confronto lembram os 50 anos do fim do conflito mais televisionado da história

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Cena da minissérie Vietnã, a Guerra que Mudou os EUA, da AppleTV+
Vietnã, a Guerra que Mudou os EUA (reprodução da série da AppleTV+)

O próximo mês de abril marca os 50 anos da tomada de Saigon (atual Ho Chi Minh) pelos norte-vietnamitas, encerrando quase duas décadas de Guerra do Vietnã. Os números históricos não são exatos, mas estima-se que o conflito deixou cerca de 2 milhões de mortos, incluindo 58 mil militares americanos. O confronto é até hoje um dos mais documentados da humanidade, muito por causa da entrada dos EUA na guerra, em 1965, quando a tecnologia já havia avançado bastante em relação ao maior conflito até então registrado, a Segunda Guerra Mundial.

A diferença é que no Vietnã a cobertura se deu em tempo real, com um grande número de cinegrafistas acompanhando de perto as batalhas: na selva, nos helicópteros, nas ruas e nas vilas camponesas – literalmente dentro do conflito. O confronto no Sudeste Asiático é considerado “a guerra do jornalismo”, quando a imprensa teve papel fundamental para encerrar um conflito que os EUA, mesmo aniquilados, insistiam em continuar. A cobertura de repórteres como Seymour Hersh ajudou a expor isso. Foi o trabalho de Hersh, por exemplo, que revelou o massacre na aldeia de My Lai em 1968. A tentativa de encobrir a chacina de cerca de 500 civis foi publicada pelo repórter americano em 1969, na agência de notícias Dispatch News Service. Republicada depois em vários veículos, a reportagem lhe rendeu o prêmio Pulitzer em 1970.

Os dez anos de guerra com a participação americana (de 1965 a 1975) geraram uma enormidade de material audiovisual, já usado em outros documentários, mas não da maneira como vimos agora, em Vietnã: A Guerra que Mudou os EUA, minissérie documental em seis episódios de cerca de 40 minutos, lançada agora pela Apple TV+. Dirigida por Rob Coldstream, os capítulos têm a narração dramatizada de Ethan Hawke e foco total nas pessoas que estiveram na linha de frente do combate, incluindo não apenas americanos, mas também vietnamitas militares e civis.

Esses personagens vão contando a história em ordem cronológica, e tudo é coberto por imagens captadas entre tiroteios, explosões e muita tensão. As entrevistas têm uma enorme carga emocional, e a minissérie promove encontros entre militares que não se viam há 50 anos – como um piloto de helicóptero que resgatou um oficial americano abatido na imensidão da selva vietnamita.

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O documentário não é parcial e mostra algumas atrocidades perpetradas pelos americanos. Os soldados contam o que faziam, e os fatos são confirmados com declarações das vítimas. O uso de drogas pelos combatentes e uma rotina de planos dos soldados americanos para matar oficiais dos EUA também são revelados sem filtros.

Ver as imagens cruas do conflito tão de perto nos faz lembrar que aqui no Brasil também tivemos a participação de alguns jornalistas que cobriram o conflito in loco. Um deles foi o paulista José Hamilton Ribeiro. Em 1968, aos 32 anos, ele foi enviado pela revista Realidade para cobrir a guerra. A publicação, da editora Abril, foi uma das mais importantes revistas de reportagens da nossa imprensa e circulou entre 1966 e 1976.

Para ser correspondente no Vietnã, o jornalista precisava se credenciar junto ao Centro de Imprensa do Governo do Vietnã do Sul e, depois, no Comando de Assistência Militar ao Vietnã dos Estados Unidos. Feito isso, José Hamilton teve que se apresentar a uma base militar para trabalhar ao lado das tropas americanas. Quando digo “ao lado” é literalmente isso. O repórter ia junto nas incursões, sempre ladeado por um cinegrafista japonês que ele contratou no local.

Capa do livro O Gosto da Guerra e Outras Reportagens da Revista Realidade, de José Hamilton Ribeiro
O Gosto da Guerra e Outras Reportagens da Revista Realidade (capa do livro)

Em uma dessas missões, o jornalista seguia logo atrás de um soldado, fazendo o mesmo caminho do recruta para evitar pisar onde não devia. Não deu muito certo. Hamilton pisou numa mina e teve o pé e parte da perna esquerda arrancados. Quando a fumaça se dissipou, ainda sem saber o que tinha acontecido, ele viu o soldado vindo em sua direção com um cigarro para lhe dar: “Sentia na boca um gosto ruim, como se tivesse engolido um punhado de terra, pólvora e sangue – hoje eu sei, era o gosto da guerra”, lembrou o jornalista. O fotógrafo Kei Shimamoto fez então o registro de seu colega desfalecendo no chão, e a foto ganhou a capa da revista.

Esse relato fantástico do repórter foi publicado originalmente na revista Realidade em maio de 1968. Um ano depois, o livro O Gosto da Guerra ampliou o alcance da história. Ano passado, depois de duas outras reedições, uma nova versão, revista e ampliada, foi lançada com o título O Gosto da Guerra – e outras reportagens da revista Realidade, incluída na coleção de jornalismo literário da Companhia das Letras. Parte do que conto aqui foi extraído do livro.

Depois de longa recuperação no Vietnã, José Hamilton Ribeiro voltou para o Brasil e seguiu trabalhando em vários veículos de imprensa. Ganhou sete prêmios Esso e segue hoje, vivíssimo, aos 89 anos, morando em Uberaba (MG). Mais de 60 jornalistas de diversas nacionalidades não tiveram a oportunidade de voltar para casa e acabaram morrendo no Vietnã.

Como diz José Hamilton Ribeiro, “guerra é ruim, mas sem repórter é pior”. O documentário e o livro que recomendamos aqui deixam isso mais claro do que nunca.

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