A imortal Fernanda Montenegro

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Fernanda Montenegro (foto Rovena Rosa, ABr)
Fernanda Montenegro (foto Rovena Rosa, ABr)

Proibição regimental da ABL às candidaturas femininas vigorou até 1976

 

A atriz Fernanda Montenegro, de 92 anos, toma posse hoje na Academia Brasileira de Letras e passará a ocupar a Cadeira nº 17, que pertenceu ao diplomata Affonso Arinos de Melo Franco (1930-2020). Os ocupantes anteriores foram o escritor Sílvio Romero, o poeta Osório Duque-Estrada, o antropólogo Roquette-Pinto, o crítico literário Álvaro Lins e o filólogo Antonio Houaiss. Será saudada por Nélida Pinón, primeira mulher a ocupar a Presidência da ABL, no ano do seu centenário, exercendo, atualmente, o cargo de secretária-geral.

A artista é apenas a nona mulher eleita para a ABL, ao longo dos 124 anos de história da academia. Antes de dela, tornaram-se imortais Rachel de Queiroz (1977), Dinah Silveira de Queiroz (1980), Lygia Fagundes Telles (1985), Nélida Piñon (1989), Zélia Gattai (2001), Ana Maria Machado (2003), Cleonice Berardinelli (2009) e Rosiska Darcy de Oliveira (2013).

Durante as primeiras oito décadas de existência da Academia Brasileira de Letras, nenhuma mulher fez parte da instituição. Até 1951, o Estatuto da ABL previa que apenas “brasileiros que tenham, em qualquer dos gêneros de literatura, publicado obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livro de valor literário” poderiam concorrer a uma de suas cadeiras.

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Quando da primeira candidatura feminina, em 1930, Amélia Beviláqua foi rejeitada, sob a justificativa de que o vocábulo “brasileiros” restringiria suas vagas apenas ao sexo masculino, ficou claro que a Academia relacionava valor literário a gênero. A segunda mulher a tentar participar do círculo de literatos imortais foi Dinah Silveira Queiroz, cuja candidatura também foi rejeitada. Apenas em 1977 a instituição discutiu novamente a questão da mulher na Academia, para dar parecer favorável a Rachel de Queiroz.

Apesar de Rachel não ter sido um expoente do movimento feminista, nem ter feito do seu discurso de posse um símbolo da conquista, a conquista por si só representou um grande passo em direção à igualdade dos gêneros. Como salientou o Diário de Pernambuco, no dia seguinte à sua posse, “Rachel de Queiroz quebra tabu e se torna imortal”, a escritora transformou-se num ícone ímpar em meio a um ambiente estagnado.

Muito antes de Rachel de Queiroz (1910-2003) se tornar a primeira mulher a vestir o fardão de ramos de café bordados com fios de ouro, outras mulheres tentaram. A primeira delas foi a jornalista Amélia de Freitas Beviláqua (1860-1946). Em 1930, escreveu uma carta ao então presidente da casa, Aloísio de Castro (1881-1959), propondo sua candidatura. Em vão. Dinah Silveira de Queiroz (1911-1982) também cumpriu os protocolos da academia: entregou, em 1977, uma carta oficializando sua inscrição e disponibilizou suas obras para os acadêmicos. De nada adiantou. Um ano depois, tentou novamente. E, em 1979, mais uma vez. Só foi eleita em 1980.

Historicamente, as candidaturas femininas foram não só reiteradamente condenadas e rejeitadas pela esmagadora maioria dos membros da academia, como sua proibição foi incorporada ao regimento interno da ABL, em 1951. Essa proibição regimental às candidaturas femininas vigorou até 1976.

Felizmente, o texto regimental foi modificado. E a ABL passou a abrigar consagradas escritoras entre suas 40 cadeiras. Fernanda Montenegro, que passa a fazer parte hoje desse seleto grupo, é um dos grandes ícones da cultura nacional, embora seja uma atriz – a rigor um perfil algo insólito para a Casa de Machado de Assis e foi eleita por unanimidade dos acadêmicos. Intelectual engajada e sensível leitora do real, sua presença enriquece os laços profundos da Academia com as artes cênicas.

Considerada uma das melhores atrizes, é frequentemente referenciada como a grande dama do cinema e da dramaturgia do Brasil. Em seu vasto currículo, foi a primeira latino-americana e a única brasileira indicada ao Oscar de Melhor Atriz. É também a única atriz indicada ao Oscar por uma atuação em língua portuguesa, sendo nomeada por sua magnífica atuação em Central do Brasil (1998). Além disso, foi a primeira brasileira a ganhar o Emmy Internacional na categoria de melhor atriz, pelo trabalho em Doce Mãe (2013).

Dentre os inúmeros prêmios nacionais e internacionais que recebeu em seus mais de setenta anos de carreira, em 1999, foi condecorada com a maior comenda civil do país, a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito, entregue pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, também titular da ABL, além de ter sido cinco vezes galardoada com o Prêmio Molière, ter recebido três vezes o Prêmio Governador do Estado de São Paulo, e conquistado o Urso de Prata, no Festival de Berlin, em 1998, pela interpretação de Dora no filme Central do Brasil, de Walter Salles.

Em 2013, foi eleita a 15ª celebridade mais influente do Brasil, pela revista Forbes. Na televisão, foi a primeira atriz contratada pela TV Tupi, em 1951, onde estrelou dezenas de teleteatros. Estreou nas telenovelas, em 1954, como protagonista de A Muralha, na Record. Realizou trabalhos na maioria das emissoras produtoras de teledramaturgia, como a Bandeirantes, TV Cultura e TV Globo, onde se encontra desde 1981.

Ingressar na ABL não é uma tarefa das mais fáceis. Muitos tentaram e não conseguiram. Monteiro Lobato (1882-1948) foi um deles. O mais importante nome da literatura infanto-juvenil brasileira tentou duas vezes: em 1922, perdeu para Eduardo Ramos (1854-1923) e, em 1926, para Adelmar Tavares (1888-1963), ambos juristas. Lima Barreto (1881-1922) é outro bom exemplo. O autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911) bateu à porta da ABL em três ocasiões. Na última, desistiu.

Em 1980, outro poeta, Mário Quintana (1906-1994), também tentou a sorte. Encorajado pelo Prêmio Machado de Assis, que recebera um ano antes pelo conjunto da obra, anunciou sua candidatura à vaga aberta pela morte de Otávio de Faria (1908-1980). Teria como concorrente o ex-ministro da Educação do governo Figueiredo, Eduardo Portella (1932-2017). Quintana, porém, não teve o mesmo êxito de Bandeira. Perdeu por 31 a 6.

A ideia de “academizar notáveis” partiu de Joaquim Nabuco (1849-1910), um dos fundadores da ABL. Em 1898, ele sugeriu a Machado de Assis (1839-1908) o nome do Barão de Rio Branco (1845-1912), ministro das Relações Exteriores. Segundo relato do acadêmico Carlos Heitor Cony (1926-2018) no artigo “A Academia e o Tempo Brasileiro”, Machado hesitou, alegando que “o barão não tinha livro publicado”. Nabuco argumentou: “Rio Branco está escrevendo o mapa do Brasil”. E o barão tornou-se acadêmico.

Por outro lado, houve quem nunca sonhou em tomar o tradicional chá das quintas-feiras, com direito a bolo, suspiros e biscoitos, dentre outros quitutes saborosos. Caso de Graciliano Ramos (1892-1953), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e Clarice Lispector (1920-1977). Em Todas as Cartas (2020), a escritora ucraniana, naturalizada brasileira, admite, em bilhete escrito a Lygia Fagundes Telles, também acadêmica da ABL, em novembro de 1977: “Quero dizer que, apesar do grande respeito que tenho pela Academia, eu jamais aceitaria entrar nela”. “A gente dá um espirro, já pensam que estamos morrendo e querem a nossa vaga”, completou a autora de A Paixão Segundo G.H. (1964).

Fernanda Montenegro acredita que a ABL está buscando abrir portas para outros públicos quando a elege. “Mas não podemos trabalhar com escalonamentos. Sempre haverá interesse de quem supostamente não seria um consumidor da arte considerada erudita. Se colocarmos uma orquestra tocando Mozart na favela haverá plateia. Essas fronteiras só existem porque não há oferta, embora exista demanda.”

Recordando os acadêmicos, Nélida Piñon, cadeira nº 30, “eu não quero ser inútil. Eu quero que a palavra do escritor tenha algum sentido, utilidade”, e o saudoso cineasta e acadêmico Nélson Pereira dos Santos, cadeira nº 7, “a questão fundamental da nossa cultura hoje é: seremos independentes ou morreremos, como disse Dom Pedro.”

Assim, desejamos e torcemos para que a palavra e o talento de Fernanda Montenegro continuem sendo úteis e que sua voz, na ABL, seja ouvida e percebida; que sua presença, magistral, e que muito enobrece a cultura brasileira, seja independente e provocativa para a reconstrução de um Brasil mais livre, justo, soberano e igualitário. Sem educação e sem cultura, não há independência.

 

Paulo Alonso, jornalista, é reitor da Universidade Santa Úrsula.

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