A instabilidade permanente e o forjar das alianças

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Soldado com fuzil (foto US Army)
Soldado com fuzil (foto US Army)

Mal o frio revela a sua face mais dura no Velho Continente, no dia 26 de novembro, os europeus amanheceram perplexos com as notícias de uma nova variante ainda mais contagiosa da peste, desta vez oriunda da África do Sul.

Com o pânico se instalando nos mercados acionários europeus, a queda no índice Stoxx 600 foi de 3,7% – o equivalente a € 390 bilhões perdidos em uma única sessão – e a queda nos preços do barril do petróleo chegaram aos US$ 10 – maior queda em um só dia desde abril de 2020.

O sobe e desce da especulação financeira em um mundo refém das grandes corporações e do sistema financeiro internacional é apenas a ponta de um iceberg muito mais perigoso.

A instabilidade global parece não dar trégua ao redor do planeta desde a aurora da terrível pandemia, que num olhar menos atento revela-se como a mãe de todos os problemas da contemporaneidade.

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Ocorre que, se olharmos um pouco mais atrás, em meados do fatídico ano de 1991, o ovo da serpente se instauraria com a recente ascensão de uma potência unipolar e sem qualquer limite.

A destruição unilateral de um país indefeso como o Iraque teve como intuito único demonstrar poder bélico e impor a primeira das linhas vermelhas ao resto do mundo: agora quem manda somos nós, os Estados Unidos da América, e quem cruzar a linha será destruído.

Era o princípio do limite impondo-se soberbamente diante de um sistema internacional perplexo – mesmo que para alguns antigos aliados europeus esta perplexidade não se fizesse aparente. Ainda.

Trinta anos se passaram, e um mundo imerso numa crise pandêmica que – e inclusive por seus efeitos econômicos perversos – parece não terminar encontra-se perplexo diante do aumento vertiginoso da competição interestatal e do acirrar dos ânimos das sociedades e suas fraturas diante das incertezas com o futuro.

Neste cenário, um fenômeno interessante que tem se revelado mais claro, passados dois anos de pandemia, diria respeito ao forjar das alianças e acordos estratégicos – mesmo que alguns de caráter, a priori, informais – ao redor do sistema internacional.

Diferentemente de 1991, ano em que os Estados Unidos da América transmutavam-se numa potência unipolar – que o passar dos anos revelou seu caráter violento e imperial (Bósnia, 1992; Kosovo, 1999; Guerra ao “Terror”, 2001; Iraque, 2003) – o mundo contemporâneo descortina o peso das potências emergentes e a formação de redes de alianças forçosamente necessárias, inclusive, para conter o espírito destrutivo e violento deste Império do Norte.

Sendo assim, é visível a articulação da China em torno de instituições como a Organização de Cooperação de Shangai (SCO), o Fórum de Cooperação China-África e o Fórum de Cooperação entre a China e os Estados Árabes.

Ou mesmo, alianças estratégicas pontuais, mas que insinuam verdadeiras ententes que se contrapõem a ameaças comuns, como é o caso da China-Rússia Comprehensive Strategic Partnership of Coordination for a New Era, que fortalece os laços, tanto em termos globais, como nas suas áreas de influência comum – nomeadamente a Ásia Central – em contraposição à cada vez mais agressiva expansão da Otan e seu patrocinador maior, os Estados Unidos.

É evidente que o eixo desta guerra contínua levada a cabo pelos Estados Unidos há 30 anos vem sofrendo uma mutação em direção às bordas da Rússia e da China (Ásia Central), bem como ao Indo-Pacífico e as bordas do Mare Nostrum chinês: o Mar do Sul da China.

Não por acaso, recentemente a missão Carrier Strike Group 21 – guiado pelo porta-aviões Queen Elizabeth – após exercícios navais ao norte da Escócia, ter cruzado apoteoticamente o Mar Mediterrâneo, atravessado o canal de Suez (sem não antes testar seus F35B bombardeando o Estado Islâmico), seguiu em direção ao Indo-Pacífico, onde se estabeleceria. Sim, era a afirmação contundente de que Londres estava de volta ao grande jogo geopolítico global.

Diante deste quadro, o papel do Reino Unido como agente desestabilizador acessório à estratégia imperial dos Estados Unidos tem se revelado claro desde o advento do chamado Brexit.

Retomando seu papel histórico de Estado Pirata, um verdadeiro Rogue State a serviço do caos sistêmico global, o Reino Unido pós-Brexit mostra-se bem mais à vontade para cumprir suas tarefas conspiratórias em todos os cantos do planeta, seguindo, portanto, e à risca, o que fora definido em seu mais recente documento estratégico intitulado Global Britain 2030.

Neste diapasão, o acordo estratégico Aukus, entre Estados Unidos, Austrália e Reino Unido, para além de representar um instrumento de pressão e confronto frente a China, subliminarmente, representa o descolamento real da estratégia global anglo-saxã da Europa. Isso fica explicitado na exclusão sumária da França, maior potência militar da União Europeia, desta relevantíssima aliança estratégica de cunho militar pela hegemonia do Indo-Pacífico.

Ciente disto, a França vem realizando certos movimentos que indicam uma tentativa de preencher o vácuo deixado pelo Reino Unido com a saída da União Europeia, bem como, fortalecer sua influência diante das incertezas deixadas pelo fim do mandato de Angela Merkel na Alemanha.

A coalizão liderada pelo social-democrata Olaf Scholz, sugere que – pelo menos num primeiro momento – a Alemanha perderá parte da autonomia conquistada graças à habilidade politica de Merkel, o que significará um afastamento da Rússia e da China e uma virada atlanticista.

A entrega do Ministério dos Negócios Estrangeiros ao Partido Verde – radicalmente russofóbico e contrário ao gasoduto Nord Stream II – comprovariam esta tese. Recentemente, a própria ministra “verde”, Annalena Baerbock, se engajou o suficiente ao ponto de conseguir bloquear a autorização que permitiria o início das atividades do gasoduto.

Portanto, os movimentos atuais sugerem que nos planos, tanto europeu, quanto interno, a França buscará evocar um discurso e uma linha mais soberanista, e em nome de uma estratégia europeia de defesa comum e mais autônoma da Otan, até como forma de estancar a sangria da fratura social e da desintegração da União Europeia.

Diante disso, e levando em consideração que o establishment francês já sabe que os britânicos estão a agir ainda mais para desestabilizar a integração europeia, a secular Entente Cordiale franco-britânica aparentemente chega melancolicamente ao fim.

Não à toa, recentemente o presidente francês Emmanuel Macron celebrou junto ao premier italiano Mario Draghi o Tratado do Quirinale, um tratado bilateral de cooperação que reforça o papel estratégico da Itália no concerto mais restrito dos atores da União Europeia. Tal iniciativa busca fortalecer o papel da UE como protagonista do seu próprio destino em matéria de Defesa, sendo na prática um ensaio para um futuro e gradual afastamento da Otan.

Ao mesmo tempo, o processo de desglobalização, aprofundado pela pandemia, parece ter vindo para ficar. Com os países centrais reformulando suas cadeias de abastecimento de bens estratégicos – atrelando-os ao conceito de segurança nacional – o acelerar de um processo de robotização que vem junto ao número escandaloso de 120 milhões de pessoas que simplesmente perderam seus empregos do dia para a noite, e um efeito inflacionário global sem precedentes, o mundo nunca se pareceu tanto com a realidade anterior à Primeira Guerra Mundial.

Não havendo no horizonte nenhum “Plano Marshall” de reconstrução pós-pandemia que possa trazer algum alívio à instabilidade global, as tensões sociais tenderão a se agravar, e a disputa entre Estados deverá se aprofundar por recursos naturais, esferas de influência e hegemonia.

O forjar das alianças interestatais que vem a seguir a pandemia talvez seja apenas um dos sintomas do aprofundamento de uma nova “Guerra dos Trinta Anos” que se arrasta desde 1991.

 

Fabio Reis Vianna é escritor e analista geopolítico.

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