A inviabilidade histórica da Política Externa do Brazil

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Se é verdade que a história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa, têm-se que o atual governo, “no tocante à questão internacional”, para valer-se da novilíngua oficial, está infestado de farsantes. Completam-se quase 18 meses de um circo de horrores em termos de política externa cujo único objetivo, que se pode extrair do que se vê, é um irresponsável alinhamento a nosso vizinho do norte, como um fim em si e não como meio para se atingir qualquer coisa.

O Itamaraty de Ernesto Araújo desenvolveu a peculiar “Política da Dupla Humilhação”.

Primeiro renuncia-se à função de formular política externa ao aderir dogmaticamente, tal qual um pároco o faz com a santa igreja, aos discursos do presidente estadunidense, os quais já vulgarizam, por necessidade de torná-la inteligível a seu eleitorado, a estratégia exterior daquele país.

Em seguida, o presidente vê-se obrigado, invariavelmente, a voltar atrás em decisões ou, mais humilhante ainda, desculpar-se com o líder estrangeiro que ele, sua família ou seu ministério, ofendeu. O caso mais recente da recusa do presidente chinês em atender a ligação de Bolsonaro é o mais didático exemplo desta política, ainda que equivalente tenha sido o caso da mudança da embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém.

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Não é, contudo, por rubor que estas segundas humilhações ocorrem. Os arroubos ideológicos do atual governo não são capazes de alterar a realidade de interesses materiais claros do país, como, por exemplo, sua agenda de comércio exterior, a qual, por sua vez, se traduz na renda auferida por uma poderosa classe exportadora nacional. Esta elite, que historicamente tanto se identifica com o externo, também se ilude, contraditoriamente, com a miragem de um Estados Unidos redentor.

O observador distraído pode ser levado a concluir que se esta fração da elite possui paixão pelo estrangeiro, ao mesmo tempo em que seus mercados externos são feridos constantemente por desastres diplomáticos, a fonte do problema deve ser a forma atabalhoada com que o governo conduz a política internacional. Ainda que seja certo que há incompetência na administração atual do Itamaraty, esta contradição tem suas raízes em elementos muito mais profundos e estruturantes.

Não é novidade a postura brasileira de seguir os Estados Unidos. Desde pelo menos o Entreguerras, os estadunidenses tornaram-se uma constante nas relações exteriores brasileiras, apesar de gradações nas afinidades entre cada presidente que tivemos e aquele país.

A primeira experiência de alinhamento incondicional que, inclusive, tornava a posição brasileira mais estadunidense que a própria posição estadunidense, foi no governo Dutra, quando se rompem as relações com a União Soviética antes mesmo dos Estados Unidos. Estes não só estranharam a decisão como também esqueceram de avisar ao Brasil que sua posição acerca da Ucrânia havia mudado, deixando-nos ao lado dos soviéticos na questão.

Um ridículo não tão ridículo em comparação com que se vê no noticiário brasileiro contemporâneo, como, por exemplo, destruir as relações superavitárias com a Venezuela, em nome de devaneios ideológicos que justificam o que nada mais é do que a política de Washington.

No entanto, o país não conseguiu resistir à contradição entre suas necessidades econômicas e a cegueira com que se atuava na seara internacional. Foi a economia e suas necessidades que fomentaram uma tendência de afastamento da hegemonia dos Estados Unidos levando, inclusive, a uma reaproximação ao bloco socialista no fim dos anos 1950 e início dos anos 1960. Esta tendência de afastamento gerou uma tensão interna que, mesmo com o golpe de 1964, de cunho altamente engajado nos objetivos dos Estados Unidos, jamais foi totalmente resolvida.

É importante ressaltar duas diferenças que marcam as relações entre ambos os países e separam o contexto da Guerra Fria do atual. Antes havia, pelo menos inconscientemente, a ilusão de que o Brasil seria agraciado com uma ajuda econômica concreta da mesma forma que fora a Europa com o Plano Marshall original. Um prêmio imaginário que justificava toda e qualquer indignidade cometida contra o Brasil.

Atualmente, toda orientação em prol do alinhamento é justificada em termos excessivamente abstratos, sem qualquer materialidade de benefícios para o Brasil. A política externa está calcada no argumento tautológico de que se deve estar com os Estados Unidos, pois é melhor estar com os Estados Unidos.

A segunda distinção é que o Brasil do século XX era um país que tentava se industrializar; hoje somos o vergonhoso exemplo da reprimarização econômica. Esta segunda observação, no entanto, não desmente a incompatibilidade entre os interesses econômicos brasileiros e este servilismo externo. Tanto a posição primário-exportadora quanto a industrialização incompleta do país têm o efeito prático de subordinar o Brasil à inescapável e constante premência de obter dólares, de onde deriva a relevância de se ter relações externas soberanas e estratégicas.

Na realidade, mais delicada ainda é a posição de um Brasil agroexportador, que toma para si os inimigos de seu maior concorrente na exportação de soja e carnes. O que realmente surpreende é que tal constatação tenha sido feita há mais de 70 anos por quem lançou as bases teóricas da estratégia estadunidense na Guerra Fria, Nicholas Spykman. Segundo este autor, a presença dos Estados Unidos na Eurásia se torna obrigatória justamente pela não complementariedade entre uma economia dependente de commodities e o imenso setor agropecuário estadunidense.

Tem-se, pois, que a Guerra Fria demonstrou, em teoria e em experiência histórica, que alinhamento automático e ganhos econômicos não são congêneres e nem ao menos correlacionados estão. Se ao leitor esta conclusão parece ainda mais anacrônica dadas as incertezas do mundo pós-pandemia, talvez o ajude a leitura do artigo de Ian Bremmer, publicado na Folha de S. Paulo do dia 7/5/2020, a perceber que se o país seguir no caminho trilhado até aqui, Bolsonaro terá cometido mais um crime contra a nação.

 

Vitor Sanchez

Economista, mestre em Economia Política Internacional e membro do Instituto da Brasilidade.

 

Marcelo da Costa Nicolau

Professor do Iserj/Faetec.

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