A Iugoslávia e a dissuasão estratégica

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A estratégia de dissuasão, na língua inglesa “deterrence”, passou a ser conhecida e mais bem estudada a partir do período do confronto nuclear. O horror aos efeitos aniquiladores das explosões nucleares levaram os especialistas a procurarem uma estratégia capaz de conter o perigo. Coube ao general Beaufre, francês, nos anos 60, o mérito de teorizar esta estratégia, que assim a apresentou:
“A dissuasão nuclear visa a paralisar o confronto bélico pela imposição, ao agressor, de ameaça de uma represália que não lhe permita sobreviver à agressão.”
Graças às dissuasão, o confronto nuclear entre as duas potências, que durou 40 anos, e suportou o desafio constante das “escaladas”, visando a superação dos arsenais e das técnicas missilicas, terminou sem que acontecesse a hecatombe.
A estratégia da dissuasão, com este nome, hoje ocupa as áreas de confronto não nuclear, no campo militar convencional, na guerrilha e nos entrechoques políticos. Sua conceituação não se afasta daquela que lhe deu o general Beaufre: trata-se de evitar o choque, a ruptura, impondo uma ameaça, cujo preço o adversário saiba, a priori, que terá que pagar.
Estamos assistindo, hoje, à dissuasão estratégica utilizada pelos sérvios para preservarem sua soberania sobre a área rebelada do Kosovo. Repte-se o que aconteceu nos conflitos da Croácia e da Bósnia onde os sérvios de Milosevic impuseram aos Estados Unidos e às grandes potências européias a ameaça de resistir a qualquer tipo de ocupação militar territorial com tropas foraneas. Sabem as grandes potências, hoje todas sob governo democrático, que a sua opinião pública não aceita mais enviar seus filhos para morrerem e se mutilarem em guerras longínquas cujos objetivos claros não entendem. Sabem, também, que os sérvios são excepcionais soldados e seu território montanhoso favorece a guerrilha que pode durar anos (os alemães durante a 2ª Grande guerra sofreram a guerrilha dos sérvios por quatro anos e nunca conseguiram dominar completamente o país).
Diante da mortandade e atrocidades causadas pelos choques armados entre guerrilheiros do Kosovo e as tropas do Exercito de Belgrado, provocando o êxodo de populações locais, varias tentativas da diplomacia dos Estados Unidos e de outros países membros da Otan buscaram um acordo entre as partes, que pusesse fim à luta armada. Todas essas tentativas, inclusive a última em que representantes dos beligerantes se reuniram na França, no castelo de Le Rambouillet, fracassaram. Desta última reunião resultou um ultimato aos beligerantes de cessarem as hostilidades, sob a ameaça de ocupação de Kosovo por soldados da Otan. A resposta do presidente Milosevic foi a de que não aceita a ocupação de território iugoslavo por tropas estrangeiras. Há 50 dias, já, o governo de Belgrado vem resistindo aos bombardeios arrasadores de seu território. Sabem os Estados Unidos e as potências da Otan, que o bombardeio aéreo sem a ocupação do território não solucionará o conflito e acabará lhes custando uma grave condenação pelas vítimas inocentes que causará.
A ocupação territorial do Kosovo, por forças militares das Otan, diante da ameaça de resistência do presidente Milosevic, poderá custar um preço tão alto em efetivos absorvidos ao longo de uma guerrilha prolongada e de perdas de vidas, que os governos de Washington e das potências européias não têm condições de pagar, porque a opinião pública de seus países não aceita tal sacrifício de seus filhos. Pelos cálculos de técnicos da Otan, esta ocupação necessitará, pelos menos, de 100 mil homens. Por isto, em que pesem as ameaças, enquanto Milosevic resistir, não é de se esperar a ocupação de Kosovo por tropas da Otan. Favorece, ainda, a tese de Milosevic de não admitir a ocupação militar do território iugoslavo, a controvérsia internacional cada dia mais acirrada sobre a legitimidade da atuação militar da Otan, ultrapassando os poderes da ONU, único órgão legitimamente autorizado a intervenções desta natureza (Art. 42 da Carta da ONU).

Carlos de Meira Mattos
General reformado do Exército e professor da Universidade Mackenzie (SP).

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