A PEC do fim da reeleição: resolve ou apenas muda o problema?

Segundo Creomar de Souza, existem indicativos de que a PEC do fim da reeleição pode passar no Senado e na Câmara.

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Creomar de Souza, CEO da Dharma Political Risk and Strategy
Creomar de Souza, CEO da Dharma Political Risk and Strategy (foto divulgação)

Conversamos sobre o Projeto de Emenda Constitucional 12/2022 (PEC), que trata, principalmente, do fim da reeleição para os cargos de prefeito, governador e presidente, com Creomar de Souza, CEO da Dharma Political Risk and Strategy.

Qual a sua avaliação sobre a PEC 12/2022?

A PEC 12/2022 surge dentro de uma percepção, que é cada vez mais generalizada dentro do ecossistema de pluralidade de atores políticos que concorrem e possuem cargos públicos, de que o estatuto da reeleição tornou a fila mais lenta. Quando eu me refiro a uma fila, eu estou falando de uma lógica de sucessão, renovação ou troca de atores políticos que não necessariamente são de grupos políticos distintos. 

A reeleição para o executivo institucionalizou a lógica de que quando um prefeito, governador ou presidente é eleito pela primeira vez, ele tem bastante clareza, em termos de horizonte, de que vai ter oito anos de mandato, o que lhe dá a possibilidade de construir um legado de quase uma década e de arrecadar atenções e paixões, por assim dizer, durante esse período, mas que cria uma desproporcionalidade em termos de competição para os que estão de fora.

Isso significa que quando se compete contra um indivíduo que está em campanha de reeleição, há uma assimetria de recursos disponíveis, seja a posse da máquina ou a própria visibilidade constante que o cargo público dá àquele que o possui, o que cria uma dinâmica que torna quase impossível a vitória do opositor que está de fora. Essa percepção foi agravada com o tempo, sobretudo, com as duas vitórias de Fernando Henrique, Lula e Dilma, sendo que a não reeleição de Bolsonaro foi uma exceção a essa dinâmica.

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O retorno de Lula, com a possibilidade de uma nova vitória, dá a esse ecossistema político a possibilidade de construir um consenso e dizer “olha, a gente vai ter que mudar a regra”, pois mesmo sabendo que não há espaço para que todos sejam prefeitos, governadores ou presidente, existe, de fato, uma compreensão de que essa morosidade no desenrolar da fila pelos cargos do executivo gera uma democracia que envelhece em termos de atores.

É como se o Brasil tivesse se transformado, em algum sentido, em uma espécie de gerontocracia, onde os atores que estão na posse de cargos públicos, sobretudo no Executivo, têm uma jornada tão longa que, efetivamente, não abrem espaço para arejar o sistema para a chegada de novas lideranças. Em termos de comparação estatística, as idades médias dos presidentes do Brasil são muito mais altas do que as idades médias de presidentes ou chefes de governo em democracias que estão no mesmo padrão ou mais robustas. Nesse aspecto específico, talvez o dilema da reeleição precise ser revisto pelos legisladores e alterado.

O fim da reeleição resolve o problema ou apenas muda o problema? Por exemplo: agora sou eu, depois vai você, depois volto eu, depois volta você.

Essa pergunta é muito boa, e o melhor jeito de respondê-la é entender que cada nova proposta política resolve um problema visível, mas que ela não tem uma capacidade óbvia, em termos de horizonte, de entender quais são os problemas que ela mesmo vai criar.

A partir do momento em que passamos a ter eleições desvinculadas, as majoritárias e as municipais, o país passou a viver, do ponto de vista do sistema político, em torno de eleições. Toda a máquina político-partidária está sempre um ano em descanso, um ano em eleição, já que a cada dois anos, nós estamos votando. Caso a PEC seja aprovada, com os mandatos sendo unificados, a reeleição eliminada e uma grande eleição geral, ela vai resolver o problema visível.

Entre os problemas não visíveis, que começam a surgir no horizonte, mas que ainda não estão claros, as eleições municipais têm uma dinâmica muito própria, pois estão isoladas e atendem ao princípio de que o município é o espaço privilegiado de cidadania e de resolução de problemas imediatos. Caso as eleições sejam unificadas, o risco de que as agendas municipais sejam comprimidas por elementos do debate federal ou estadual se torna um problema no horizonte, mas eu não consigo precisar se esse problema é real ou se ele é variável e o texto final vai resolvê-lo.

Outro ponto: como todos os mandatos legislativos teriam o mesmo período de tempo, cinco anos, a própria lógica organizacional de um bicameralismo pode ir por terra, pois passaríamos a ter uma dinâmica de quase unicameralismo. Com isso, os senadores talvez não tenham mais o distanciamento político que, teoricamente, eles teriam para tomar decisões difíceis, já que a ideia do mandato de oito anos seria criar, justamente, uma espécie de contrabalanço. Vale lembrar que o Senado é a casa que não está pressionada de forma constante por eleições justamente para que possa tomar decisões difíceis, mesmo que sejam impopulares em algum sentido.

Quando essa dinâmica é alterada, nós podemos trabalhar com a hipótese de que, possivelmente, o quinto ano da legislatura, tanto na Câmara, quanto no Senado, e também nas assembleias estaduais e nas câmaras de vereadores, será um ano de menor produtividade diante da dinâmica eleitoral. Isso é um problema, mas talvez seja um problema menor do que o problema que existe na atual conjuntura, em que, basicamente, você tem metade do mandato dos parlamentares sendo comprimido por interesses eleitorais, ou seja, o parlamento só funciona com alguma tranquilidade em anos ímpares.

Por que essa PEC ganhou tração nesse momento?

Por uma convergência de fatores. O primeiro elemento de fundo, e que é inescapável, é que o país vive em um ambiente de bastante polarização política. Em grande medida, os eleitores estão presos à ideia de que os políticos das suas preferências são uma espécie de popstars que proferem verdades quase cosmogônicas que não podem ser contestadas. Isso alimenta, em algum sentido, uma percepção de que o país se torne refém de uma dualidade que, ao final, não tem um projeto.

O segundo elemento, que é tão importante quanto o primeiro, é que nesta dinâmica de eleições a cada dois anos, os projetos de país se tornam irrelevantes diante dos projetos eleitorais. Entenda-se por projeto eleitoral a importância de possuir cadeiras na Câmara Federal, pois é isso que dá tração aos partidos políticos, e de usar essas cadeiras para ter acesso ao orçamento público como instrumento para fazer o maior número de prefeitos e de cadeiras nos legislativos estaduais e municipais, o que no fim gera uma correlação importante com as eleições de governadores e de senadores.

O terceiro elemento é que, talvez, os dois elementos anteriores tenham alimentado um elemento síntese que já mencionei, brevemente, na primeira resposta: a forma como o sistema político eleitoral está montado faz com que aqueles que tenham alcançado um determinado espaço de poder fiquem cristalizados de forma a que não haja espaço para uma renovação, que não necessariamente traria uma alternância ideológica ou político-partidária profunda. Eu me refiro muito mais a uma alternância do ponto de vista geracional.

A sensação que há entre jovens talentos da política nacional, independente das suas posições político-ideológicas, é que não há espaço de crescimento, pois é como se houvesse uma espécie de platô construído por aqueles que chegaram primeiro e que construíram estruturas que não permitem que haja um elemento de passagem, o que alimenta uma gerontocracia, que é um poder muito arraigado em gerações mais avançadas.

Aqui, eu estou tomando muito cuidado para não desprezar o papel da senilidade na política, pois não quero cometer nenhum tipo de lógica etarista, mas para aqueles que são muito críticos do modelo atual, nós podemos trazer outro termo que vem da filosofia política, que é a ideia de que o sistema construído se alimenta, em termos hipotéticos, de uma kakistocracia, ou seja, o sistema é tão cristalizado para manter o poder na mão de pequenos grupos que se perpetuam, que o poder acaba sendo exercido pelos menos aptos ao seu exercício.

Um ponto importante a ser entendido é que nessa junção de componentes, talvez o mais importante seja a fila. Isso porque há uma demanda por parte daqueles que não possuem espaços de poder para que haja uma mudança que facilite a competitividade ou a torne menos assimétrica. Em algum sentido, a confluência desses elementos pode ter criado o espaço para que se faça essa discussão agora.

Essa PEC passa no Senado e na Câmara?

Essa é a pergunta de US$ 1 milhão. Objetivamente, eu não tenho como dizer se a PEC vai passar no Senado e na Câmara, mas existem alguns indicativos interessantes. O primeiro é que o Senado construiu a PEC com um texto muito objetivo e sintético, o que dá pouca margem para eventuais interpretações acerca de inconstitucionalidade. O segundo é que a reforma não se aplica ao ciclo eleitoral de 2026. Ela entraria em vigência em 2030, sendo que os eleitos em 2028 não seriam afetados por ela, em uma espécie de regra de transição.

Além disso, as lideranças legislativas na Câmara e no Senado já deram demonstrações públicas de que são favoráveis ao texto, ou pelo menos à ideia do texto. Obviamente, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, é muito mais favorável à PEC e está se esforçando, pessoalmente, para recolocar o Senado no cerne da discussão de questões importantes, algo que a casa perdeu durante a gestão anterior. Com relação ao presidente da Câmara, Hugo Motta, ele já disse, mais de uma vez, que tem uma posição pessoal contrária ao estatuto da reeleição.

Por quando se discute esse assunto, sempre se foca no fim da reeleição para cargos do Executivo, e nunca do Legislativo, mesmo que fosse uma limitação de mandatos?

Esse é um elemento muito importante a ser pensado, mas eu não vejo um movimento com interesse de eliminar a possibilidade de perpetuação de uma carreira política de longo prazo no legislativo. Cada democracia, seja ela de baixa, média ou alta qualidade, construiu atributos para lidar com um problema que é muito comum, em específico, na América Latina: a dinâmica de personalização e de perpetuação no poder.

Por exemplo, Manuel Zelaya, presidente de Honduras entre 2006 e 2009, foi removido do poder após cogitar a possibilidade de concorrer à reeleição, quando a Constituição do país veda, até mesmo, a simples menção a esse assunto. Na Colômbia, não existe reeleição presidencial. No Chile, um presidente não pode se reeleger, mas pode voltar depois, tanto que Michelle Bachelet e Sebastián Piñera tiveram mandatos intercalados.

No caso do Brasil, a construção de um consenso acaba sendo muito difícil devido ao nível de complexidade do país, que é muito grande, populoso e diverso. Nesse processo, os legisladores veem que o problema está no executivo, mas não querem vê-lo a partir de uma lógica que exige uma mudança muito mais profunda na dinâmica do próprio legislativo.

Por mais que os mandatos dos senadores passariam de oito para cinco anos, o que em tese, seria uma perda, enquanto os mandatos dos deputados passariam de quatro para cinco anos, o que, em tese, seria um ganho, em termos de ganhos relativos, os legisladores seguiriam ganhando em relação ao Executivo em todas as esferas, já que prefeitos, governadores e presidente não poderiam mais se reeleger.

Nós podemos ter muita clareza sobre o problema que a PEC quer enfrentar, mas se o objetivo fosse a melhoria do arejamento do sistema, o ideal seria que ninguém pudesse se reeleger, mas também temos que lembrar que a realidade se impõe, e nessa dinâmica de que a realidade vai se impondo, os legisladores não parecem muito afeitos à ideia de criar maiores obstáculos além dos que já estão construídos no texto base.

Não seria interessante adotarmos uma trava como existe nos Estados Unidos, onde um presidente só pode exercer o cargo duas vezes, independente de serem seguidas ou intercaladas?

Toda regra que torne o jogo mais competitivo e simétrico, é sempre bem-vinda, mas nós precisamos fazer uma reflexão histórica do que aconteceu para que avançássemos no sentido da reeleição. Em 1985, a ditadura militar chegou ao fim. Em 1988, a atual Constituição foi promulgada. Em 1989, nós tivemos a primeira eleição civil, marcada pela vitória do ex-presidente Fernando Collor, sendo que antes do final do seu mandato, ele sofreu impeachment devido a um escândalo hiper complicado de corrupção. Quando Collor caiu, muitos atores políticos do mundo civil tinham medo de que esse fracasso alimentasse o fim da democracia, já que os militares ainda estavam na ante-sala. Aqui, nós temos que lembrar que a passagem de poder dos militares para os civis se deu sob uma lógica de controle dos militares sobre o processo, diferente, por exemplo, do que aconteceu na Argentina.

Com a saída de Collor, assumiu Itamar Franco, e após Itamar, nós tivemos Fernando Henrique, que conseguiu fazer o que os militares, Sarney e Collor não conseguiram: controlar a inflação, o principal elemento que carcomia a crença dos cidadãos na qualidade do Estado brasileiro. À medida em que ele foi fazendo uma série de reformas, sendo que o Plano Real foi a mais impactante, se criou o consenso de que era necessário avançar na agenda de reformas. Com isso, a emenda da reeleição foi aprovada e Fernando Henrique foi o seu primeiro beneficiário. Depois veio Lula, que foi reeleito, e nós tivemos dezesseis anos de muita estabilidade política. Posteriormente, nós tivemos a Dilma, sendo que no seu segundo mandato, todo o prédio da Nova República acabou se degradando muito rápido, já que sistemas e soluções políticas se degradam muito rápido.

A grande vantagem do modelo democrático é que ao não colocarmos como elementos intransponíveis o estatuto da reeleição ou da não reeleição, ou uma trava, nós ganhamos um mínimo de flexibilidade que dá previsibilidade, estabilidade e regras do jogo competitivas e muito claras para todo mundo. O ponto é que qualquer solução dada sempre vai ter dilemas.

Com relação aos Estados Unidos, durante a Segunda Guerra Mundial, Franklin Delano Roosevelt foi reeleito várias vezes, mas sempre respeitando a regra do jogo e não se colocando como um presidente imperial, por assim dizer, mas quando passou o seu momento, o Congresso Americano estabeleceu uma trava em que um presidente só poderia ser reeleito uma vez.

O problema é que hoje os Estados Unidos possuem, pela primeira vez, um presidente imperial, Donald Trump, que tem um estilo personalista e que já disse que se puder, se candidata de novo. A questão é se o Congresso americano vai manter ou derrubar a trava e, caso ela seja derrubada, se a Suprema Corte aceitaria isso.

Como as democracias são sistemas muito frágeis e dependentes de crença, uma trava pode funcionar para mim e para você, mas não para o Joãozinho que acha que o papel não importa nada para ele, pois mais importante do que a trava em si, é a capacidade do sistema alimentar a crença de que ele provê o melhor arranjo político possível.

A dificuldade da atual dinâmica político-eleitoral brasileira talvez esteja no fato de que os cidadãos comuns estão enfadados de votarem a cada dois anos e as suas vidas só piorarem. É isso que dá espaço para o legislador dizer “olha, eu tenho uma nova solução”, sendo que essa solução seria votar uma vez a cada cinco anos e não reeleger prefeitos, governadores e presidente, o que, teoricamente, faria com que eles trabalhassem muito mais, já que eles não vão ser reeleitos, mas terão a possibilidade de se candidatarem para outros cargos. Isso abriria espaço para gente nova, mas gente nova pode trazer tanto coisas boas, quanto ruins.

Eu sempre gosto de conversar sobre como Eduardo Paes, prefeito do Rio de Janeiro, foi do seu pior momento para um renascimento, em um intervalo muito curto de tempo, graças ao fato de que aqueles que disseram que iam fazer diferente, fizeram muito pior. Talvez esse seja o grande ponto da democracia competitiva: o fato de que os indivíduos podem se reinventar e se colocar em uma posição de destaque. 

Sendo o mais objetivo possível, mais importante do que a dinâmica da trava, é a aderência da crença popular de que a regra funciona e de que ela dá espaço para que a vida das pessoas funcione. Se isso não acontece, a ideia de democracia fica muito difusa, pois ela vai funcionar para um grupo muito pequeno de indivíduos, mas não vai resolver o problema do cotidiano, sendo que o Brasil é um país com um número considerável de pessoas que não têm acesso a saneamento, iluminação pública, serviço de saúde de qualidade e segurança pública. Como o cidadão vota, mas a sua vida não melhora, isso é muito perigoso, pois abre espaço para a representação institucional de indivíduos que não dão a mínima para a representação institucional. Com isso, nós entramos em uma lógica de entropia muito acelerada com efeitos e impactos que podem ser destruidores para as sociedades como um todo.

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