A série britânica Adolescência, lançada recentemente por uma plataforma paga de streaming, trouxe à tona um debate urgente: o poder destrutivo da manosfera – um ecossistema digital que radicaliza adolescentes e pré-adolescentes por meio de discursos de ódio misógino, culminando em violência real. Enquanto a ficção choca plateias mundo afora, no Brasil, uma pergunta crucial permanece: onde está regulação das plataformas – o PL 2630 – a proposta de legislação que poderia ser nossa principal ferramenta contra essa ameaça?
Como engenheiro eletrônico, advogado, especialista em regulação de telecomunicações e militante do software livre, acompanho há décadas a interseção entre tecnologia e sociedade. Também sou avô de adolescente, o que me faz olhar para esse fenômeno não apenas com preocupação profissional, mas com a urgência de quem vê as novas gerações sendo impactadas por ele. A minissérie Adolescência não é só um drama bem-feito; é um alerta sobre o que acontece quando algoritmos, omissão e discurso de ódio se encontram.
A manosfera global: do Brasil à China, o desafio de regular o ódio digital
Enquanto no Brasil assistimos à proliferação de discursos de violência e ódio nas plataformas, na China o movimento redpill – termo utilizado para um movimento de homens que defendem uma “masculinidade dominante” – também assume características únicas, adaptando-se ao contexto sociopolítico local.
A retórica misógina na internet chinesa mistura valores culturais tradicionais sobre papéis de gênero com a linguagem moderna dos movimentos incel – celibato involuntário.
Assim como no Ocidente, as redes sociais chinesas enfrentam o desafio de conter a disseminação do ódio e da violência. Plataformas chinesas veem seus algoritmos – projetados para maximizar engajamento – amplificarem involuntariamente conteúdos misóginos que criticam mulheres por supostos ‘privilégios” ou “materialismo”.
Desde 2023, novas leis contra cyberbullying buscam equilibrar controle estatal com proteção aos usuários.
A manosfera no Brasil
A manosfera – termo que engloba movimentos como redpill, MGTOW, incels e grupos masculinistas/machistas – ganhou força no Brasil através de várias plataformas e fóruns anônimos. Seus discursos, muitas vezes disfarçados de “autoajuda masculina” ou “denúncia contra injustiças”, culpam mulheres por frustrações afetivas e econômicas, usando termos como “feminazi”, “hipergamia” e “gold digging”.
Influenciadores popularizaram essas ideias, associando-as a narrativas políticas conservadoras. Quando algumas plataformas apertaram a moderação, esses grupos migraram para outras plataformas onde a fiscalização é quase inexistente.
O resultado? Adolescentes radicalizados, muitos dos quais desenvolvem aversão a mulheres, dificuldade em relacionamentos saudáveis e, em casos extremos, aderem a ideias violentas – como os ataques inspirados em ícones dos incels.
O papel dos algoritmos e a falha das plataformas
A série Adolescência mostra como a radicalização começa com memes aparentemente inofensivos e evolui para fóruns de ódio. No Brasil, o algoritmo de uma rede recomenda vídeos redpill após usuários consumirem conteúdos sobre “crise masculina” ou “relacionamentos difíceis”. Em outra rede, termos como “homem alto vs. Baixo” viralizam, reforçando estereótipos misóginos.
Uma determina rede social de propriedade norte-americana reduziu a sua moderação, permitindo que contas misóginas ataquem publicamente feministas; uma outra rede segue sendo um santuário para discursos extremistas, com pouca ou nenhuma ação contra grupos que incitam violência.
O PL 2630: uma solução necessária
O PL 2630 (Institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet) poderia ser um divisor de águas. Afinal, entre suas propostas estão:
• Responsabilizar plataformas por conteúdo ilegal (como ameaças e incitação à violência).
• Exigir transparência algorítmica, obrigando redes a explicar como impulsionam certos discursos.
• Remoção ágil de posts que violem direitos humanos (em até 24 horas para conteúdos explícitos).
Se aprovado, o PL 2630 obrigaria plataformas resistentes a agir contra a manosfera, monitorando e banindo fóruns misóginos. Mas por que o PL 2630 ainda não saiu do papel?
A resposta envolve resistência política: setores conservadores alegam que o PL traz “censura” – o mesmo argumento usado por influenciadores redpill. Outros críticos afirmam que, além disso, mesmo se o PL for aprovado, fóruns anônimos e a lentidão da Justiça podem minar sua eficácia.
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O que mais precisa ser feito? A aprovação do PL 2630 é necessária e fundamental; mas, ainda, quando aprovado, será insuficiente. Para evitar que a ficção de Adolescência vire realidade, o Brasil precisa de ações e de políticas públicas que versem sobre:
1 – Educação digital nas nossas escolas, ensinando nossos jovens a identificar e combater discurso de ódio, em todos seus matizes.
2 – Normas adequadas e pressão sobre anunciantes, para que retirem patrocínio de plataformas que lucram com conteúdo misógino, racistas e de ódio.
3 – Normas claras e duras que punam ações criminosas de influenciadores que incitam violência e ódio, responsabilizando-os por seus discursos.
Um alerta que não pode ser ignorado
Adolescência não é apenas uma série – é um retrato do que acontece quando algoritmos, ódio e omissão se encontram. O PL 2630 é um passo importante, mas sozinho não resolverá o problema. Precisamos de regulação rígida, educação e justiça rápida para impedir que a manosfera continue transformando meninos em armas.
O Brasil não está preparado para o que vem por aí. A pergunta é: vamos aprovar políticas públicas adequadas antes que seja tarde?
Israel Fernando de Carvalho Bayma é engenheiro eletrônico e advogado, especialista em regulação de telecomunicações.