Conversamos com o tributarista Gustavo Brigagão sobre a sua visão sobre o Projeto de Lei complementar (PLP) 68/2024, que trata da regulamentação da Reforma Tributária aprovada através da Emenda Constitucional (EC) 132/2023. O PLP 68/2024 foi aprovado na Câmara dos Deputados na semana passada e segue agora para apreciação e votação no Senado.
Qual a sua avaliação sobre o PLP 68/2024?
Para mim, o maior defeito, tanto do PLP 68/2024, que trata das regras gerais da CBS (Contribuição Social de Bens e Serviços) e do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), quanto do PLP 108/2024, que trata do Comitê Gestor, e que ainda não foi à votação, é que eles foram objeto de uma elaboração por parte de 19 grupos de trabalho dos quais participaram, exclusivamente, representantes das Fazendas federal, estaduais e municipais. Os contribuintes não tiveram assento nesses grupos. Esses projetos foram elaborados com espírito, obviamente, fazendário e enviesado para o lado das Fazendas. Isso fez com que saísse um projeto que não agrada de jeito algum e que vai criar distorções na economia que são muito preocupantes, pois o único viés é arrecadatório.
O que tínhamos que ter tido nesses grupos era a reunião de representantes das três esferas da Federação e das instituições representativas dos contribuintes. Se tivesse havido um encontro de vontades entre fazendas e contribuintes, que são os que pagam a conta, o projeto teria sido entregue à Câmara dos Deputados de forma muito mais palatável, mas não foi isso o que aconteceu. O projeto foi entregue à Câmara, que fez várias audiências públicas, das quais eu participei de algumas, onde os contribuintes tiveram a oportunidade de tentar apontar questões que eram absolutamente relevantes, sendo que algumas foram atendidas e outras não, entre as quais algumas muito sérias.
E aí chega na votação da Câmara, que, por excelência, sobre a presidência do Arthur Lira, é sempre açodada, sempre feita de forma, a meu ver, absolutamente inadequada com aquilo que se espera de uma norma que tem a importância da regulamentação da reforma tributária. Como ele votou um regime de urgência, o projeto não passou pelas Comissões de Constituição e Justiça e de Assuntos Econômicos, de forma a que ele fosse digerido através de mais ambientes de debate entre contribuintes e fisco. Tudo foi feito com a ideia de que “nós temos que correr o máximo com isso, pois estamos esperando a Reforma Tributária há 30 anos”. Com a EC 132/2023 foi a mesma coisa.
Esse projeto será objeto de muitos debates no Senado. Lá, o cenário é outro. No Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 45/2019, da qual surgiu a EC 132/2023, no Senado houve condição de diálogo e de troca de ideias entre todos, sendo que o projeto passou pelas comissões e teve audiências públicas. Houve, efetivamente, um exame por parte da casa legislativa. No Senado, eu espero, realmente, que a situação mude e que se tenha condições de demonstrar quais são os problemas que esse projeto está oferecendo ao Brasil, e não apenas aos contribuintes, pois essa é a história da Galinha dos Ovos de Ouro. Se a Galinha for morta, acabam os Ovos de Ouro, já que parte deles são tributos.
O que mais lhe chamou a atenção, tanto positivamente quanto negativamente, no PLP 68/2024?
Negativamente, tem tantas coisas que, normalmente, nessas circunstâncias, eu me atenho a determinados pontos e fico martelando na mesma tecla. Por exemplo, a PEC 45/2019, na Câmara dos Deputados, tinha uma definição de não cumulatividade que eu achava que ficava muito aquém daquilo que estava sendo prometido. Eles acabaram aumentando o conceito, que ficou muito melhor, mas colocaram ali uma semente de debate. Isso porque uma das maiores fontes de contencioso que temos no Brasil é a questão de bens de uso e consumo pessoal, cujo conceito precisa ser trabalhado de forma específica, pois ele não está adequado.
Mas eu tenho duas outras questões, ainda relativas à não cumulatividade, que são muito desastrosas. O primeiro ponto é que os créditos estão sendo condicionados a que o elo anterior da cadeia tenha, efetivamente, pago o imposto por ele. Quando você condiciona esse creditamento ao pagamento pelo elo anterior, você vira fiscal da tributação da CBS e do IBS. Isso porque eu tenho que virar para o fornecedor e questioná-lo se ele pagou o tributo, e para que eu possa me creditar, eu vou ter que pedir o documento de arrecadação que comprove o pagamento.
Só que ele pode se virar para mim e me dizer que não tem como encaminhar o documento de arrecadação pago, pois o pagamento não foi feito através do recolhimento em espécie para os cofres públicos, pois como seus créditos eram maiores que seus débitos, eles foram compensados. Nesse caso, você terá que fazer uma auditoria para saber se o seu fornecedor fez essa compensação corretamente. Isso gera uma complexidade enorme. Imagine a situação de uma loja de departamento que terá que fazer isso com 15 mil fornecedores. Quem tem que fazer isso é a fiscalização, ou do Comitê Gestor ou da Receita Federal, e não o contribuinte.
Isso não existe em lugar algum do mundo. Eu já fiz dois congressos internacionais e convidei a professora Rita de La Feria, que é a musa inspiradora do CCIF (Centro de Cidadania Fiscal), que foi quem elaborou toda essa reforma tributária. Quando eu lhe perguntei se ela conhecia algum lugar no mundo que tivesse condicionado o crédito do pagamento ao elo anterior da cadeia, ela me disse que não conhecia e que já tinha dito ao CCIF para que não fizesse isso.
Por mais que a PEC 132/2024 preveja o condicionamento do crédito ao pagamento do elo anterior da cadeia, o PLP 68/2024 poderia fazer ou não essa exigência, mas o problema é que ele fez isso, prevalecendo assim a vontade fazendária. Isso é desastroso.
Normalmente, os tributos que são não cumulativos, como IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços) e PIS/Cofins (Programa de Integração Social/Contribuição para Financiamento da Seguridade Social), possuem alíquotas elevadas. Por exemplo, o PIS/Cofins possui os dois regimes, cumulativo e não cumulativo, sendo que a alíquota do cumulativo é 3,65%, e a do não cumulativo é de 9,25%. Se nós tivermos um tributo não cumulativo com complexidades para o creditamento, nós vamos ter um tributo cumulativo, que em tese deveria ser não cumulativo, com uma alíquota elevada. Vale lembrar que a alíquota da CBS e do IBS, se não for a maior, certamente será uma das maiores do mundo.
O segundo ponto é a adoção do split payment, que era uma mera opção dada ao legislador complementar, e que acabou sendo adotada no PLP 68/2024. O split payment é o recolhimento do imposto na boca do caixa, ou seja, toda vez que você pagar um fornecedor, o próprio banco vai fazer a divisão do valor pago, repassando ao fornecedor e aos cofres públicos as suas partes.
O primeiro mal disso é a quebra absoluta do fluxo financeiro da empresa. Hoje, esses pagamentos são feitos depois de um prazo e apenas se a empresa tiver tido mais débitos que créditos. Com o split payment, não. Com ele, você vai recolher aos cofres públicos independentemente de, naquele período, ter tido mais créditos que débitos. Se no final do período você tiver saldo credor, as Fazendas terão que devolver esse valor. Agora, você sabe como é a devolução de créditos nesse país. Por exemplo, os créditos de exportação estão acumulados há anos, sendo que a promessa de alguns estados para pagá-los é de 20 anos. Outro exemplo: os empréstimos compulsórios feitos na década de 1980 não foram devolvidos até hoje aos contribuintes. Essa é a nossa realidade: os valores que deveriam ser restituídos pelo Estado aos contribuintes não são restituídos.
Aliado à quebra do fluxo de caixa, há uma complexidade operacional para se fazer isso, pois tanto os contribuintes quanto o poder público terão que ter softwares apropriados para essa operação. Isso implica um custo financeiro para que essas tecnologias sejam implementadas, o que gera um problema de concorrência, pois as grandes empresas terão muito mais condições que as menores para adotar esse sistema. Na Europa, o split payment não deu certo. A Deloitte fez um estudo, encomendado pela União Europeia, que apontou que o split payment não funcionaria devido às razões que acabei de te dizer.
Quando o split payment é aplicado, ele não é aplicado genericamente como está no projeto, mas para determinados setores onde há sonegação fiscal, pois assim se gera um controle que é muito maior. O regime de pagamento do imposto na boca do caixa já existe hoje através de um regime especial de fiscalização do ICMS que impõe ao contribuinte que o valor do imposto seja pago no momento da venda. Isso é completamente anômalo, mas esse contribuinte é considerado devedor contumaz, ou seja, ele é um sonegador, um mal pagador de impostos.
Se se quer aplicar o split payment, que ele seja aplicado de forma específica em setores que são, notoriamente, sonegadores, e não de forma genérica. Se não for assim, essa complexidade vai ser tão grande que os contribuintes vão querer passar para a informalidade, o oposto que se quer com o split payment, que é um tiro no pé. Existem outras questões, mas essas são as que me preocupam mais.
Mas você vê algum aspecto positivo nesse projeto?
Olha, de positivo, eu acho que temos a junção das competências de estados e municípios através da IBS, pois eles vivem brigando para saber se o imposto que incide numa série de situações é o ICMS ou o ISS (Imposrto sobre Serviços). Esse conflito vai desaparecer. Isso é favorável, mas eu vou te dizer que é difícil achar coisas boas nessa reforma.
No início, eu era favorável a ela, tanto que o pessoal do CCIF me chamava para dar palestras. Se você pegar artigos meus de anos atrás, eu sugeria a criação de um IVA (Imposto sobre Valor Agregado) Federal, como estava no início da PEC 45/2019, mas do jeito que esse projeto foi evoluindo, sinceramente… Eu estou muito assustado com o que estou vendo.
Você mencionou a questão dos créditos de exportação e dos empréstimos compulsórios da década de 1980. Eu acho esse assunto até engraçado, pois existem dois mundos diferentes que as pessoas parecem não compreender e correlacionar. De um lado, quando se pega a Reforma Tributária, se fala mil maravilhas do aproveitamento de créditos, mas do outro, quando olhamos para como o sistema funciona, nós vemos o governo querendo tirar os créditos e criando regrinhas e prazos para que eles não sejam utilizados. Considerando esses dois mundos, qual a sua expectativa para a Reforma Tributária?
Eles estão prometendo uma tecnologia que ainda não existe, pois terá que ser desenvolvida. Nós não temos ETs (extraterrestres) que estão descendo no Brasil, modificando tudo e prometendo coisas que não conhecíamos. Nós temos os mesmíssimos brasileiros, que transformaram o sistema atual num caos, prometendo que por meio de outro sistema, que vai substituir o anterior, todas essas coisas vão acabar.
Você falou muito bem. Todos os empecilhos, que são criados para devolução de valores que foram recolhidos ao Estado indevidamente vão continuar. As Fazendas não vão mudar de uma hora para outra, pois isso é instintivo. Eles vão criar o mais possível de complicações. Eu não quero ver se uma máquina vai conseguir fazer uma declaração, pois o que eu quero ver é se haverá a efetiva vontade, por parte da administração pública, de tratar o contribuinte da forma como ele deve ser tratado, mesmo que haja problemas orçamentários que tenham que ser resolvidos.
Veja essa questão toda que estamos tendo em relação ao orçamento atual. O Haddad está tentando criar as piores maldades tributárias porque ele está com problemas orçamentários. Ele quer o déficit zero, só que ele não vai conseguir sem essas maldades. Então, como vai ficar a devolução de todos os créditos numa situação como essa? Será que os créditos serão, efetivamente, devolvidos aos contribuintes?
Eu tenho muito receio do que vai acontecer. Nós vamos ter um período de transição enorme que vai até 2033. A partir de 2026, nós vamos ter que lidar com dois sistemas tributários caóticos ao mesmo tempo. Para mim será uma festa. Eu sou advogado tributarista e vou ter trabalho até o pescoço, mas como cidadão, eu estou muito preocupado.
Qual a sua avaliação sobre o Imposto Seletivo (IS)?
A promessa é de que o IS não teria efeito arrecadatório, mas nós vimos na negociação da Câmara dos Deputados, que quando a carne e alguns remédios foram inseridos na cesta básica, a primeira coisa que se falou foi em mexer nos bens e serviços que estarão sujeitos ao IS de forma a que a receita fosse equilibrada. Quando se adota uma postura como essa, se dá caráter arrecadatório ao IS.
O IS é um tributo extrafiscal, ou seja, quando o administrador público o utiliza, ele não tem a intenção de arrecadar, mas de regular algum setor. O Imposto de Importação e o Imposto de Exportação são seletivos. As suas alíquotas podem ser movimentadas, a qualquer momento, por lei, pois a intenção é evitar que um determinado produto seja importado ou exportado. A mesma coisa com o IOF e o IPI. Atualmente, esses são os nossos quatro tributos extrafiscais.
O IS era para ter a natureza de tributo extrafiscal. Pela PEC 45/2019, os parâmetros para que ele fosse aplicado em determinada atividade ou bem era que houvesse mal à saúde ou ao meio ambiente, mas jamais a arrecadação. Esses critérios estão sendo utilizados? A retirada das armas e do carvão, e a inclusão dos carros elétricos, mostram que a valoração dessas questões é inexistente.
É preciso que haja muita seriedade na determinação daquilo que é, de fato, gerador de uma externalidade negativa, seja sobre o aspecto da saúde, seja sobre o aspecto do meio ambiente. Outra questão é que é preciso escolher bem. O carro elétrico foi considerado danoso à saúde porque a sua bateria tem lítio. Como ela possui substâncias que são terríveis para a saúde humana, então o IS deveria recair sobre a bateria, e não sobre o carro elétrico. Essas questões tornam o IS muito discutível.
Qual a sua expectativa para a discussão no Senado?
A minha expectativa é boa, pois as questões tributárias votadas pelo Senado passaram por um exame muito mais aprofundado e com todas as partes possíveis sendo ouvidas. Lá, a discussão da PEC 45/2019 teve outro nível, diferente da Câmara.
No PLP 68/2024, a Câmara propiciou audiências públicas para que os setores fossem escutados, então eu não posso dizer que ocorreu a mesma coisa que havia ocorrido com a PEC 45/2019, que foi um show dos horrores, já que ninguém teve voz e ninguém foi escutado, pois o projeto foi tratorado de uma forma inadmissível. Dessa vez não, mas houve alterações do texto do PLP 68/2024 durante a votação. Por exemplo, houve a inserção de alimentos na cesta básica na última hora da votação.
Na aprovação da Reforma, também havia a expectativa sobre a forma como o Senado conduziria a discussão. As alterações foram feitas, o projeto foi votado e voltou para a Câmara, que derrubou muitas das alterações feitas pelo Senado. Isso não pode acontecer novamente? Detalhe que depois que a Câmara derrubou muitas das alterações feitas pelo Senado na PEC 45/2019, pouco se viu notícias sobre isso.
Pode acontecer. Da mesma forma, se o trâmite tivesse sido iniciado no Senado, o que a Câmara decidisse poderia ser derrubado pelo Senado, pois a casa original do projeto é que determina como ele será elaborado. No meu modo de ver, o espírito que existe na Câmara é aprovar o projeto da forma como ele veio dos governos – federal, estaduais e municipais -, pois o Senado vai examinar com vagar e eliminar os seus absurdos. Eu acho que é isso que passa na cabeça desse pessoal.
Considerando a conversa que tivemos, você gostaria de acrescentar algum ponto à nossa entrevista?
Falar de tudo é impossível, pois são tantas coisinhas erradas. Por exemplo, foram criadas incidências sobre doações, sendo que não se pode tributar doações, que é de competência exclusiva dos estados (ITCMD/Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação). Como também não se pode tributar transmissão de bens e imóveis, pois essa é uma competência exclusiva dos municípios (ITBI/Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis). Quando se diz que o IBS tem uma competência compartilhada entre estados e municípios, essa competência se dá em relação à essência do IBS. Isso não significa que os estados passaram a ter competência para fazer incidir os tributos de competência dos municípios e nem vice-versa. Existem milhões de questões, mas nós tocamos em algumas que são muito sérias.