Conversamos com Sérgio Vale, diretor da MB Associados, sobre a relação do presidente Lula com o presidente do Banco Central (BC) dos seus dois primeiros mandatos, Henrique Meirelles, e sobre como deverá se dar a sua relação com o próximo presidente do BC, que será indicado por ele em substituição a Roberto Campos, cujo mandato terminará no dia 31/12/2024.
Durante seus dois primeiros mandatos, o presidente Lula teve um único presidente do BC: Henrique Meirelles. Nessa época, por mais que o presidente do BC fosse indicado pelo presidente da República, o BC teve autonomia operacional e houve uma relação harmoniosa entre as duas presidências. Na sua visão, o que formou e consolidou esse ambiente nesse período?
Nós precisamos entender que aquele momento era totalmente diferente do que estamos vivenciando agora. Há 20 anos, o presidente Lula estava começando a sua carreira na presidência, o que o fazia mais cauteloso e cuidadoso. Ele recebeu uma economia muito mais organizada, com um superávit primário extremamente alto e com um processo de reformas muito longo, além de uma certa estabilidade política. Naquele momento, o presidente Lula tinha um entorno muito proponente a manter o padrão de reformas, especialmente a parte econômica, que não era, essencialmente, só o Meirelles, mas, especialmente, o Antonio Palocci no Ministério da Fazenda e toda a equipe econômica que havia sido montada.
Havia alguns nomes heterodoxos, especialmente no BNDES e no Planejamento, mas o centro do núcleo econômico e do núcleo político do presidente pensava em manter o centro das reformas feitas, e no caso da questão fiscal, que é essencial aqui, seria mantida ainda mais. Por exemplo, no primeiro ano do primeiro mandato do presidente Lula, houve uma mudança da meta de superávit primário para cima (na época, passou de 3,75% para 4,25%).
Além dessas sinalizações terem sido muito boas, não podemos nos esquecer que o cenário internacional também era muito favorável. Do ponto de vista externo, em 2003 nós estávamos num mundo bastante positivo. A China estava começando a crescer, os Estados Unidos eram a liderança isolada, e a Europa estava em um movimento muito forte de crescimento, pois havia introduzido o euro. Nós também víamos isso nos mercados emergentes. O mundo estava num padrão de crescimento muito melhor, mais estável e mais sólido do que estamos vivendo hoje. Nesse sentido, aquele cenário era mais favorável para o presidente Lula.
De uma forma geral, em termos macroeconômicos, o que difere as duas primeiras presidências do presidente Lula para a terceira?
Atualmente, nós temos uma situação fiscal muito mais difícil, além do telhado de vidro de um longo governo do PT, com os mandatos dos presidentes Lula e Dilma, o que coloca dificuldades de comparação. A situação fiscal mais deletéria que temos agora é o grande centro das dificuldades e das preocupações, o que coloca também pressão em cima do BC.
No primeiro mandato do presidente Lula, com a questão fiscal bem consolidada, a taxa de juros foi caindo apesar de ter havido um susto do que seria o governo, o câmbio ter explodido e ter havido um repique de inflação. Na época, a Selic estava num patamar bem mais elevado, chegando a 26,5% no início do seu primeiro mandato, mas depois ela chegou a 13,25%, ou seja, ela caiu pela metade na sua primeira presidência.
Agora, nós estamos falando de uma Selic que continua elevada, 10,5%, que apesar de ter caído, não vai cair mais, e uma inflação mais baixa do que estava naquela época. Além de o presidente Lula ter uma percepção errada em relação à base do problema, que é a questão fiscal, que está mal encaminhada, há a diferença de modelo da Lei de Independência do BC (Lei Complementar nº 179/2021), com um presidente que não é escolhido pelo presidente da República de ocasião quando ele começa o seu mandato, pois o presidente do BC pega dois anos de mandato de dois presidentes diferentes (os dois anos finais de um presidente e os dois anos iniciais do outro) de forma a que se dê uma sinalização de independência, de fato, do BC, para que ele seja, eminentemente, técnico.
A questão política também atrapalhou bastante, pois Roberto Campos, de certa forma, politiza mais do que os presidentes que vimos no passado. Por exemplo, o próprio Meirelles e o Ilan Goldfajn não politizaram em nada. Eles eram técnicos. Roberto Campos não politiza nas suas ações, mas politiza indo votar com a camisa do Brasil ou se encontrando, recorrentemente, com a classe política, o que coloca um pouco de ruído. Para um presidente que é muito reativo a isso, como é o caso do Lula, esse cenário fica ainda mais estressado.
O momento é diferente, e o Lula está, de certa forma, mais isolado, com um entorno menos favorável ao que tínhamos no passado, e com dificuldades estruturais mais difíceis do que naquela época, o que coloca esse cenário de dificuldade de gestão de política econômica.
Em seu primeiro mandato, Lula não era tão distante, mas, de certa forma, ele virou um mito. A direita tem o seu mito com Bolsonaro, e a esquerda tem o seu mito com Lula, e, como todo mito, Lula é quase inatingível e se tornou um oráculo. Hoje, não há o que havia no seu primeiro mandato, que era uma espécie de cúpula, com José Dirceu, Luiz Gushiken e Palocci. Esse grupo funcionava como um conselho que, de fato, era ouvido por Lula. Naquele momento, esses conselheiros estavam indicando o País por um caminho mais correto. Como isso mudou, isso dificulta muito a vida do próprio governo.
Considerando a forte possibilidade de que o próximo presidente do BC seja Gabriel Galípolo e a autonomia do BC, você acredita que seja possível repetir a relação que havia entre a presidência da República e a presidência do BC nos dois primeiros mandatos do presidente Lula?
Eu acho que sim. É provável que haja uma normalização da relação, pois será um presidente do BC escolhido pelo atual presidente da República. O Meirelles tinha muita rixa naquela época, mas era diferente, pois o Lula o havia escolhido e o ele nunca politizava. Meirelles sempre ficava numa posição muito equilibrada e técnica, apesar de ser um presidente do BC que, vamos lembrar, havia sido eleito deputado federal pelo PSDB em 2002. Meirelles foi eminentemente técnico ao longo desse período e nunca houve essa discussão de que ele estaria agindo como oposição e sendo político.
Como a politização subiu de tom, isso dificulta ainda mais a vida do BC daqui pra frente, pois sempre vai ficar a ideia de que ele está tomando as suas decisões para agradar ou não ao governo. A Lei de Independência do BC, de certa forma, protege isso, mas o que precisamos acompanhar é que o BC que está surgindo tem sim um viés mais heterodoxo, pois não dá para descartar a formação das pessoas. A maior parte do atual BC, e nós precisamos esperar os nomes que vão entrar no final do ano, tem uma visão de base mais heterodoxa.
Para o BC que temos agora, o mandato continua sendo relacionado, muito intensamente, à inflação, mas o próximo BC, talvez, dê um pouco mais de atenção ao crescimento. Isso não significa uma leniência total com a inflação e a taxa de juros, mas eu acho que vai haver um certo conforto em deixar a inflação rodar entre 4% e 4,5%, que é o teto da meta de inflação. Na percepção do mercado, o próximo BC, com uma visão mais heterodoxa, vai estar confortável em manter a inflação nesse patamar, com uma Selic em torno de 10%, um pouco mais, um pouco menos, o que seria suficiente.
Não vai haver nenhuma explosão da inflação, mas esse é um cenário em que vamos conviver com uma inflação que vai ficar bastante próxima do teto. Nesse sentido, será como uma mini-Dilma. Na sua época, o BC era bastante técnico, mas, por conta das pressões políticas, nós tivemos uma inflação permanentemente no teto, já que ela não saía de 6,5%. Isso deve acontecer de novo.
Nós temos que esperar a confirmação dos nomes dos três próximos membros para termos uma percepção, de fato, de que BC vamos ter pela frente. O próximo BC vai viver muito pressionado por um cenário fiscal, que não está bem evoluído, e por um presidente que vai estar se aproximando de uma eleição complicada. Como essa pressão será maior que a vivida por Meirelles lá atrás, será preciso ter mais sangue frio do que ele teve.