Conversamos sobre o atual quadro do sistema elétrico brasileiro com Edvaldo Santana, ex-diretor da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), doutor em engenharia de produção e professor titular aposentado da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
O Brasil possui uma capacidade instalada muito superior ao seu consumo de energia (em julho, a carga média foi de 75,6 GW), mas mesmo assim a bandeira vermelha foi acionada. O que explica o que está acontecendo?
O ponto é que de uma capacidade instalada de 229 GW, as hidrelétricas, que produzem energia durante 24 horas, são responsáveis por 101 GW. Outra questão é que as energias eólica e solar, responsáveis por 32,4 GW e 15,7 GW, respectivamente, são fontes intermitentes, pois precisam de sol e de vento para que possam gerar energia. É por isso que toda vez que a oferta tem a predominância de fontes intermitentes, a capacidade instalada é bem maior que a demanda máxima, mas não tão maior como a nossa, que tem excesso. O que está estimulando isso são os subsídios, e não uma lógica econômica.
Nós podemos entrar em crise porque nem toda a nossa capacidade instalada produz energia o tempo inteiro. Quem pode fazer isso são as hidrelétricas, as nucleares e as termelétricas a gás, quando são despachadas de maneira inflexível, e por aí vai. Como a energia solar só gera entre 8h e 16h, e mesmo assim a geração máxima fica entre 12h e 14h30, e a energia eólica de madrugada, o sistema tem uma forte dependência das hidrelétricas, que hoje sustentam a oferta.
O problema é 2024 ou 2025?
Para este ano, são pequenas as chances de esse problema se agravar. No final de agosto, os reservatórios estavam com 55%, 56%, de volume na média, o que seria suficiente para se chegar até o início do próximo período de chuva. O problema é que os reservatórios estão se esvaziando muito rapidamente. Nesse período, o normal seria que eles esvaziassem entre 4% e 5%, mas em agosto eles esvaziaram quase 8%. Para setembro e outubro, a previsão é em torno de 10%. Isso significa que os reservatórios vão chegar no final de novembro com 34%, 35%, o que é pouco.
Em 2020, nós tivemos uma crise enorme porque, em dezembro daquele ano, os reservatórios estavam com 30%. Como não choveu, essa foi a maior escassez que tivemos no sistema elétrico. Foi pior que em 2001 e 2002, quando tivemos o racionamento. É por isso que o governo está fazendo de tudo para proteger 2025. Se chover, tudo bem, vai ter muita água, vertimento, mas é melhor fazer isso do que não ter água.
O problema é que os ciclos de seca estão cada vez menores. Para não irmos muito longe, antes do racionamento de 2001, nós tivemos o racionamento de 1986, 15 anos antes. Depois de 2001, nós tivemos a crise de 2013, 12 anos depois, 2017, 4 anos, e 2021, também 4 anos, e agora, três anos depois, nós temos a possibilidade de uma nova crise. Isso é um efeito da mudança climática.
Contudo, se despacharmos as termelétricas para resolvermos o problema, nós vamos agravar a situação. Daqui algum tempo, nós vamos voltar a essa discussão e vamos precisar despachar, novamente, as termelétricas. Isso resolve a situação, mas é uma medida medíocre, pois é cara, penaliza mais o pobre que o rico, e mais a frente vai agravar a situação, pois cria um ciclo vicioso.
A melhor solução seria premiar a pessoa que reduzir o seu consumo. Inclusive, isso, que se chama Resposta da Demanda, foi proposto, recentemente, pelos grandes consumidores, que já têm esse tipo de contrato com a ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), que pode pedir, por exemplo, o desligamento de 5 MW por 16 horas, 18 horas.
Em vez de de se pagar para despachar uma termelétrica, seria melhor pagar para que os consumidores consumissem menos, o que resolve o problema sem que se aumente as emissões de CO2 na atmosfera, mas nós continuamos tomando uma medida que resolve agora, mas piora a situação na frente.
O que o governo deveria fazer agora para corrigir essa situação, já que temos uma capacidade instalada superior ao consumo, e mesmo assim temos esse problema?
Como o Brasil vai continuar sendo, fortemente, dependente das hidrelétricas e a ter muitas dificuldades para se livrar das termelétricas, sobretudo as termelétricas a gás, uma boa maneira de se resolver essa situação, gradativamente, seria com a utilização de baterias. Em vez de se despachar as termelétricas entre 16h e 19h, baterias já carregadas injetariam energia na rede. Mesmo no Brasil, esse tipo de bateria já possui um custo bastante competitivo, além de ser uma energia limpa.
Diante desse problema, o governo está sabendo o que fazer? Ele tem uma direção?
Olha, me parece que não. A ONS tem consciência do que deve ser feito, mas o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, tem falado coisas que parecem contraditórias ao que está sendo feito pelo operador. Tem horas em que é melhor deixar apenas o operador do sistema falar, do que todo mundo falar e começar a bater cabeça.
Outro problema foi essa discussão de que não era para ter sido bandeira vermelha grau dois, e sim grau um. Isso teve uma repercussão ruim, pois muita gente apareceu dizendo que o governo fez a redução de grau quando viu que o grau 2 teria um impacto maior na inflação, portanto, ele teria agido de forma política. Tudo isso acaba gerando um bate cabeça em uma hora em que todos deveriam estar tentando fazer o correto, como eu acho que está sendo feito pela ONS.
Dando um passo para trás, qual é o problema que nos levou a essa situação?
O problema é que o planejamento não existe. Como ele ficou meio que vinculado ao Congresso, que está planejando a expansão com fontes intermitentes via subsídio, ninguém se preocupou com a confiabilidade e segurança do sistema.
Desde maio está prevista a realização de uma audiência pública para definição das diretrizes para um leilão de reserva de capacidade, justamente para segurança do sistema, mas até hoje isso não aconteceu. Se ele for realizado ainda neste ano, como as usinas vão precisar de três a quatro anos para serem construídas, não vai haver mais tempo para que elas entrem em operação em 2027 como se queria, já que elas vão entrar lá para 2028.
O detalhe é que não houve leilão por causa de uma briga entre as termelétricas e os fornecedores de baterias, ou seja, o governo ficou muito conduzido por lobbies e não consegue se desvincular deles nem para fazer o correto, que é o leilão da reserva de capacidade, que foi uma iniciativa do próprio governo.
Durante o Regime Militar, os militares construíram hidrelétricas com reservatórios gigantescos, que poderiam atender por meses e mais meses mesmo com uma seca prolongada, só que neste século foram construídas as hidrelétricas a fio d’água, que possuem pequenos reservatórios ou até mesmo nem possuem reservatórios. Qual a sua avaliação sobre as hidrelétricas a fio d’água? Elas foram um erro, um acerto ou um acerto com problema de planejamento?
É bom você fazer essa pergunta, pois pouca gente fala sobre isso. Quando me perguntam sobre o que deveria ser feito, eu falo sobre as baterias, mas antes disso a primeira solução seria a construção de grandes hidrelétricas com grandes reservatórios, pois elas são grandes baterias naturais. Quem está sustentando todo o sistema são os grandes reservatórios, já que eles possuem 101 GW de energia armazenada.
A questão é que as exigências ambientais começaram a criar várias restrições para a construção de hidrelétricas com reservatórios. Por exemplo, Belo Monte teria reservatório, mas como ela não tem, ela está gerando zero de energia. Santo Antônio foi desligada nesta semana e Jirau será desligada na próxima, pois elas não têm água. Se elas tivessem reservatório, elas estariam gerando energia.
Claro, se essas três usinas tivessem reservatórios, neste momento, eles também estariam próximos de se esvaziar, já que estamos em um período de seca muito grande. Como Belo Monte, Santo Antônio e Jirau não têm reservatórios como deveriam ter, foram construídas estruturas muito caras que geram muito pouca energia. Esse é o problema.
A ironia é que vai ser mais fácil o Ministério de Meio-Ambiente aceitar a exploração de gás e óleo na Margem Equatorial do que deixar construir, por exemplo, uma grande hidrelétrica na Bacia do Tapajós, onde hoje seria a grande hidrelétrica com reservatório do país. Haveria um grande bafafá mundial contra quem quisesse construir essa usina.
Os grandes reservatórios são a solução, e não o problema. Aliás, o presidente Lula e o ministro de Minas e Energia enchem a barriga para dizer que nós temos uma matriz limpa, pois quase 90% da capacidade instalada é de energia limpa, incluindo nesse número as hidrelétricas. Se as hidrelétricas são limpas, por que não se deixa construí-las?