Diante da tragédia no Rio Grande do Sul, apenas a mobilização da sociedade civil brasileira como um todo pode lidar com uma política efetiva de reconstrução. Qualquer que seja a necessidade de verba orçamentária para enfrentar os efeitos desastrosos das enchentes, o governo terá de abrir seus cofres “incondicionalmente” para cobrir a assistência às vítimas humanas da tragédia, que perderam tudo e precisam de dinheiro para recomeçar suas vidas, mesmo que isso represente a ruptura do chamado “arcabouço fiscal”.
Contudo, esta é uma iniciativa para atender à demanda monetária do povo para comprar comida, remédios, móveis e bens de consumo em geral, tendo em vista a situação de emergência. Ao empresariado brasileiro, fora do Rio Grande do Sul, compete aumentar a produção desses bens para equilibrar a oferta física deles em relação à demanda monetária, sem tentarem se aproveitar inescrupulosamente de aumentos injustificados de preços, já que haverá mais dinheiro em circulação sem contrapartida de bens físicos, com risco de inflação.
Em suma, do empresariado não deve-se esperar dinheiro para ajudar os gaúchos. Isso terá de ser tarefa do governo, que emite moeda e pode realizar déficits públicos, pressionando o Banco Central para baixar as taxas de juros. Se bem planejados e coordenados com a redução dos juros e o aumento de investimentos daí derivados no setor produtivo fora do Rio Grande do Sul, os déficits públicos não causarão inflação, mas aumento da produção privada.
Enfim, empresários das áreas do país não afetadas pelas enchentes devem, principalmente, colocar para funcionar suas máquinas, seus funcionários e suas terras a fim de aumentar a produção e a oferta de bens, serviços e insumos, para compensar as perdas reais dos gaúchos e equilibrar com maior oferta desses recursos o aumento da demanda financeira oriunda dos programas de assistência social do governo, reforçando o combate à inflação.
Enquanto durarem as consequências da tragédia, e para que continue havendo algum controle da inflação, o empresariado das áreas não atingidas pela catástrofe gaúcha, em face da demanda crescente de produtos e serviços reais exigidos pela reconstrução do Rio Grande do Sul – que certamente não poderá ser imediata – deverá buscar níveis cada vez mais elevados de produção e oferta no mercado real, com reflexos no mercado de trabalho. O desemprego, que já está caindo no Brasil, poderá se estabilizar no nível considerado de pleno emprego, de 2% a 3% da força de trabalho, se os setores produtivos urbano e rural forem utilizados em sua capacidade máxima.
Assim, a reconstrução do Rio Grande do Sul poderá resultar em uma oportunidade de crescimento econômico e social que afetará todo o país, num primeiro momento, para depois ser realizada mais devagar a partir do aumento da produção de bens e serviços no próprio estado, incrementada pelo aumento da produção nos outros estados e, eventualmente, por importações.
Essa oportunidade única é a forma mais eficaz para derrubar os fetiches que travam o desenvolvimento econômico e social do país. O principal deles, os superávits primários que o “mercado” impõe ao governo, reduzem drasticamente a capacidade do estado de cumprir com suas funções constitucionais básicas, como atendimento à saúde e educação, deixando para investimentos em áreas prioritárias apenas uma pequena fatia do orçamento global, já que quase metade dele é apropriada pelos “barões” do setor financeiro. Entretanto, fazer superávit primário, ou evitar déficits públicos, é como os neoliberais veem as causas da inflação.
Contudo, a inflação, como sabem os economistas, tanto os da velha economia, como Adam Smith e Karl Marx, como os de vanguarda, não é um fenômeno estritamente monetário. É um desequilíbrio entre oferta e demanda reais. Ela surge quando a demanda real cresce, sem ser acompanhada pela oferta; e se apresenta como deflação, quando a demanda cai. Sem demanda suficiente, os empresários reduzem sua produção e sua oferta no mercado. E isso é uma situação tremendamente desfavorável no capitalismo, porque, sem demanda não há lucro, e o sistema não funciona.
Esses princípios são conhecidos desde os anos 1940, quando foi criado o FMI (Fundo Monetário Internacional). Participou das discussões um jovem economista ucraniano radicado nos Estados Unidos, Abba Lerner, muito influenciado por Keynes, o qual viria a ser consagrado como o maior economista do século 20. Lerner e Keynes, derrotados pelos ideólogos que lançaram as bases do FMI, sustentavam a possibilidade de uma política de pleno emprego a partir da realização de déficits públicos responsáveis, que tivessem contrapartida de investimentos reais. Já o FMI, ainda hoje, segue uma política repressiva do crédito e da demanda.
Economistas norte-americanos atuais, como Randall Wray, recuperaram as teorias de Lerner, Finanças Funcionais, e lançaram a Teoria Monetária Moderna, difundida por um grupo de jovens economistas brasileiros. Aqui, porém, a iniciativa não prosperou. Ficou sufocada debaixo das teorias neoliberais que sustentam que o déficit público, e até o pleno emprego, sempre geram inflação. A TMM, porém, afirma que o déficit só gera inflação se a emissão monetária não for seguida de investimentos públicos bem planejados em infraestrutura e em bens de consumo, simultaneamente.
Em tempos normais, Finanças Funcionais jamais seriam aplicadas no Brasil. A “oligarquia” agrofinanceira que domina a política econômica brasileira não deixaria. Vivendo de correção monetária e juros e de extração mineral e florestal, ela suga todas as energias do estado, consumindo praticamente metade do orçamento público em despesas financeiras e deixando apenas a outra metade para despesas do governo com funções obrigatórias de interesse da população e para investimentos essenciais. É dessa faixa estreita, o orçamento primário, que terão de sair os recursos para reconstrução do Rio Grande do Sul.
Entretanto, para transferir para o setor produtivo os recursos financeiros que são hoje prisioneiros de uma legislação neoliberal, que vem, incrivelmente, desde 1988, com a promulgação da Constituição, e que foi aprofundada recentemente pelos governos Temer e Bolsonaro – com alguma concessão também do governo Dilma – será necessário remover do caminho de Lula as travas legais que lhe foram deixadas pelos seus dois antecessores, apoiados pela parte de um Congresso também neoliberal. Isso implicará intensas negociações com os parlamentares, para identificar pelo menos alguns progressistas que apoiem mudanças constitucionais imediatas.
Se não houvesse um desastre das proporções do que está acontecendo no sul, não haveria espaço para o presidente negociar com os congressistas essas medidas. Como aconteceu no início de seu mandato, forças regressivas na sociedade civil e no Parlamento, e inclusive no próprio governo, especialmente economistas, praticamente exigiram um orçamento superavitário ou, no mínimo, equilibrado. Quando, semanas atrás, Lula anunciou que poderia haver uma queda do superávit previsto no “arcabouço fiscal” de 0,5% do PIB, o mundo financeiro desabou sobre ele.
Veremos agora o que acontecerá com a execução orçamentária. Os detentores da dívida pública interna, que são os principais credores financeiros do estado, resistirão até a morte na defesa do que acham ser os seus direitos intocáveis, a correção monetária da dívida pública, mesmo que se proponha excluir a correção dos títulos públicos só daqui pra frente, e renegociar seus prazos, sem afetar direito adquirido. A “oligarquia” financeira continuaria como credora do principal da dívida, com juros normais – por exemplo, CDI – liberando o estado da carga da correção monetária e dos juros capitalizados ao dia.
Mas que não se tenha dúvida. O atual presidente do Banco Central não aceitará isso. Mesmo que, sem essas mudanças, a reconstrução do Rio Grande do Sul se torne impossível. A conspiração do setor financeiro, agro, fundos, grande indústria e bilionários, inclusive externos, como Musk, continuará exigindo que o estado brasileiro continue cumprindo seu “dever” de expandir sem limites sua riqueza financeira, sem contrapartida de qualquer investimento em bens e serviços que poderiam ser comprados pelo povo, com o dinheiro público que o governo certamente terá de lhe repassar no Rio Grande do Sul.
Do contrário, os gaúchos, frustrados, acabariam liderando uma nova Revolução modernizadora, como a de 30, agora para combater a “oligarquia” financeira urbana, junto com a velha “oligarquia” rural, esta de cara nova.
J. Carlos de Assis é economista e jornalista.