A validade do ‘Ordem e Progresso’

Quadro e soluções descritas por Comte no século 19 seguem atuais Por Gustavo Biscaia de Lacerda

67
Bandeira do Brasil - Ordem e Progresso (foto de André Maceira, CC)
Bandeira do Brasil - Ordem e Progresso (foto de André Maceira, CC)

A ninguém escapa o aspecto profundamente dividido da sociedade e da política atuais; essa divisão, por vezes, é afirmada na oposição “direita-esquerda”, mas também pode ser estabelecida como “reacionários vs. revolucionários”. Esses vários termos descrevem clivagens profundas, sem oferecerem soluções para o problema de fundo. Ora, é nesse quadro que se justifica e ganha renovada relevância a fórmula positivista “Ordem e Progresso”.

Quando Augusto Comte (1798–1857) – o fundador da Sociologia, da História das Ciências e do Positivismo – propôs a fórmula “Ordem e Progresso”, no início do século 19, o quadro que ele tinha à sua frente era muito parecido com o que vivemos atualmente. Por um lado, ocorriam profundas e necessárias mudanças sociais, que eram tanto uma questão de fato (as mudanças ocorriam de qualquer maneira) quanto uma questão de valores (as mudanças eram desejadas): esses processos foram resumidos nos debates e nos choques da Revolução Francesa (1789–1798).

Por outro lado, havia resistências às mudanças – e essas resistências aconteciam também como realidades sociopolíticas e como valores. Os defensores das mudanças eram revolucionários; os resistentes às mudanças eram reacionários.

Para o liberalismo político, a disputa entre revolucionários e reacionários era, e é, apenas a disputa entre “situação” e “oposição”, que devem se alternar no poder do Estado e na direção geral da sociedade. A ideia da alternância entre situação e oposição tem um aspecto central e importantíssimo de civilizar a disputa, impedir a violência e estimular a tolerância; mas essa ideia serve apenas para isso: ela não explica a origem do problema, nem propõe nenhuma solução efetiva de longo prazo.

Espaço Publicitáriocnseg

Em face da dramática disputa política, social e moral entre revolucionários e reacionários, Comte percebeu que ela decorre de uma dinâmica histórica mais ampla e mais profunda, decorrente de processos contados em séculos e vinculada a necessidades humanas efetivas.

Com um orgulho estranho e chocante, muito da sociologia atual afirma que despreza as teorias gerais da sociedade e as concepções históricas amplas. À parte a irracionalidade radical desse desprezo, isso impede que se entenda de maneira profunda e cuidadosa o ser humano em geral e o Ocidente em particular.

Ora, as investigações de Comte (1) evidenciaram que toda sociedade conjuga instituições que mantêm a unidade social ao longo do tempo e que permitem que ocorram mudanças ao longo do tempo (são a Estática e a Dinâmica sociais); (2) Comte descobriu que, ao longo do tempo, o Ocidente desenvolveu a filosofia, a política e a afetividade, mas que, desde a Idade Média, desenvolvem-se processos intensos opondo a ordem ao progresso (incluindo aí a ciência, a tecnologia, o “capitalismo” etc.).

Esse entendimento conduziu o fundador da Sociologia a reconhecer, de uma única vez, vários aspectos importantes:

  • 1 – a mera justaposição liberal entre revolucionários e reacionários não resolve nada e, considerando as possibilidades de choques, violências etc., com frequência essa justaposição serve apenas para estimular as disputas;
  • 2 – embora os termos empregados pelos próprios grupos revolucionários e reacionários para exprimir suas concepções políticas, morais e filosóficas sejam, com frequência, equivocados, essas concepções apresentam aspectos importantes e verdadeiros;
  • 3 – sem ignorar que as sociedades têm sempre aspectos de disputas políticas e sociais, o fato é que a oposição entre revolucionários e reacionários é mais profunda que as disputas políticas habituais, e sua solução envolve a ultrapassagem simultânea das pressões contraditórias entre revolucionários e reacionários, por meio do reconhecimento dos aspectos legítimos de seus programas e da rejeição de seus extremismos e seus erros.

Em outras palavras, o “Ordem e Progresso”, então, surge como um programa múltiplo: ao mesmo tempo, ele é a afirmação de aspectos sociológicos (as condições de ordem, as exigências do progresso), o reconhecimento da legitimidade de perspectivas divergentes (reacionários e revolucionários) e a afirmação de que a solução do problema exige a ultrapassagem conjunta das perspectivas opostas, reconhecendo-se o que elas têm de real, útil, relativista e orgânico.

Basta um pouco de atenção e honestidade para perceber que o quadro descrito por A. Comte no início do século 19 é, infelizmente, ainda o nosso no início do século 21. Por certo que muitas coisas mudaram, alguns problemas surgiram e outros se agravaram, mas a dinâmica social fundamental, baseada em problemas profundos, ainda é exatamente a mesma indicada pelo fundador da Sociologia.

Mais do que isso: não apenas o diagnóstico proposto por ele é o mesmo, como, ainda mais importante, a solução proposta é a mesma. Frente a tal programa, os pares direita–esquerda, situação–oposição e até revolucionários–reacionários tornam-se banais, mesmo simplistas e esquemáticos. É claro que, no dia a dia, esses pares são operacionais, mas são úteis exatamente porque são superficiais.

Para concluir, dois comentários sobre a política atual. As explicações correntes que direita e esquerda dão do “Ordem e Progresso” ignoram totalmente as reflexões acima e evidenciam seus próprios preconceitos. A direita costuma desprezar o progresso, visto como ateísmo ou revolucionarismo: o marxismo é o grande símbolo desses traços, mas isso nada tem a ver com A. Comte.

Já a esquerda entende a ordem como capitalismo, paz de cemitério, violência autoritária: novamente, o marxismo é o grande promotor dessas concepções que, novamente, nada têm a ver com Augusto Comte. A direita quer a ordem, sacrificando o progresso; a esquerda quer o progresso, sacrificando a ordem. Em ambos os casos, suas concepções são estreitas e enviesadas; suas propostas são contraditórias, parciais e desastrosas.

Além disso, vários artistas brasileiros, bem-intencionados, mas ignorantes, têm difundido, nos últimos anos, o mito de que o “Ordem e Progresso” sacrifica o “Amor”, afirmado por Augusto Comte na expressão “O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”.

Esperamos ter deixado claro que isso é um erro: são fórmulas distintas, com objetivos diferentes. Mas o amor não está ausente do “Ordem e Progresso”: a superação das perspectivas parciais e contraditórias só é possível com e pelo amor. A palavra “e”, que liga a ordem ao progresso, subentende o amor.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui