Conversamos com o tributarista Paulo de Barros Carvalho sobre sua visão sobre o sistema tributário brasileiro.
Como surgiu o atual sistema tributário?
Como todo fato social e jurídico, o sistema tributário brasileiro advém de uma trajetória histórica, que veio se formando a partir de 1953, com a encomenda de um anteprojeto feita ao doutor Rubens Gomes de Souza, que elaborou um amplo texto que deu início à discussão.
Veja que o Código Tributário Nacional (CTN) somente apareceu em 1966, com a Lei 5172. Ele esteve parado na Câmara durante um certo tempo, sendo que o ministro Aliomar Baleeiro ajudou muito em termos políticos na tramitação do anteprojeto que se tornou o CTN.
A sistematização do direito tributário brasileiro tem como marco o CTN. É aí que começa a experiência tributária brasileira. Antes disso, essa experiência era muito fraca, pois o nosso “sistema” era formado por fragmentos de doutrinas italianas, alemãs e espanholas. Era uma mistura, digamos assim, sem a mínima organização.
O CTN veio e fez essa organização, nascendo assim o sistema tributário nacional e a experiência que começamos a viver e a construir. Uma experiência que foi custosa e que movimentou os grandes pensadores do meio jurídico nacional. É essa experiência que está na iminência de ser preterida e de ser jogada de lado, estando fortemente ameaçada por essa reforma.
Em uma oportunidade, eu conversei sobre reforma com o constitucionalista e tributarista Geraldo Ataliba (falecido em nov/1995), quando ele me disse para não falarmos de reforma, mas sim na aplicação dos princípios dos valores constitucionais brasileiros. É disso que precisamos para formar uma experiência consistente e sólida. Dizia ele que no Brasil, quando há um problema, as pessoas querem editar uma nova lei, que, uma vez aprovada, começa a dar problemas, dando início às suas modificações. Com isso, não se forma uma tradição.
O Brasil não tinha tradição, mas hoje a experiência brasileira é respeitada no contexto dos países de direito tributário avançado. Essa reforma ameaça desprezar tudo isso, como se isso tivesse caído do céu ou tivesse vindo do centro da Terra. Esse é o grande problema: experiência se constrói com o tempo, e isso é algo demorado.
O sistema do direito positivo brasileiro é formado por cinco subsistemas. O subsistema das normas municipais; estaduais; federais; nacionais, subsistema onde estão os códigos que se aplicam a todas as pessoas políticas de direito constitucional interno; e o total, que é formado pela integração dos quatro outros subsistemas.
Essa estrutura tem uma complexidade imensa, mas é uma complexidade que tem funcionado. No Brasil, dizem que o sistema tributário atrapalha todo mundo, impede a arrecadação, mas como o país já cresceu até 10% ao ano com esse sistema?
De fato, trata-se de um sistema tributário complexo. Existem três pessoas políticas de direito constitucional interno e uma de direito constitucional externo, que é a União. Os municípios, os estados, o Distrito Federal e a União possuem competências devidamente firmadas no texto constitucional.
Essas competências convivem, diria eu, harmonicamente, dentro do que se pode esperar de uma convivência tão ampla e tão intensa. Essas competências dizem respeito às fontes de arrecadação de autonomia. É de lá que eles tiram as competências outorgadas pelo Direito Constitucional.
No ano 2000, eu e o Heleno Torres coordenamos um congresso internacional em Vitória (ES). Nessa oportunidade, o professor italiano Victor Uckmar relatou os problemas italianos, como excessos de tributos, complexidades e que os deveres instrumentais e formais, também conhecidos como obrigações acessórias, estavam cada vez mais intensos, o que trazia problemas para o contribuinte, que tinha que, cada vez mais, contratar funcionários e montar departamentos, e que também trazia problemas para a administração, que se confundia ao receber consultas e ao dar os esclarecimentos que os contribuintes precisavam. Disso saíam os problemas de corrupção.
Todos os demais professores levantaram os mesmos problemas com relação aos seus países, como a corrupção proporcionada pela complexidade dos expedientes que as leis exigiam a títulos de deveres instrumentais e formais. Todos reclamaram do excesso de tributação. Passado quase um quarto de século, nós seguimos vivendo os mesmos problemas.
Ocorre que não há meio de segurar as obrigações acessórias, pois o Estado tende a permanecer do mesmo tamanho, sendo que o universo de contribuintes cresce. O que a administração pública pode fazer é criar novos deveres instrumentais e formais e prescrever ao contribuinte que cumpra esses deveres.
O Brasil possui um sistema que funciona e que prevê os seus meios de modificação e de aperfeiçoamento, de aumento e de redução de tributos. Tanto assim que quando o professor Michel Temer assumiu a Presidência, eu tive a oportunidade de conversar com ele sobre a reforma tributária. Nessa conversa, ele me disse que não queria utilizar essa palavra, pois ia falar em pequenas modificações tópicas, começando pela União, com o PIS/Cofins.
Quando eu lhe perguntei se ele faria a racionalização dos tributos federais, ele me disse que também não ia utilizar esse termo, mas sim simplificação, pois essa era uma palavra mais suave e palatável. Com isso, ele ia sugerir aos estados e municípios que eles fizessem o mesmo, simplificando os tributos de suas competências.
Nessa oportunidade, eu disse ao Temer que os processos de simplificação tributária possuem uma curva, que, inicialmente, é descendente, pois existem uma série de tarefas, trabalhos e esforços para que seja implantada a simplificação, o que faz com que as receitas diminuam num primeiro momento. Dando certo esse processo, essa curva vai se recuperando e se torna ascendente.
Isso significa algo que nenhum prefeito e nenhum governador vê com simpatia, pois os frutos serão recolhidos pelo seu sucessor, já que, no seu tempo, haverá o decréscimo dessa curva. Ele reconheceu essa questão, mas me disse que a União podia simplificar e controlar o movimento de arrecadação para que ele não caísse muito.
O Brasil se declara uma federação, mas de federação ele só tem o nome, pois é um Estado unitário. Tudo vai para a União decidir. Eu me lembro de uma história que me impressionou muito. No tempo em que era governador de São Paulo, o atual vice-presidente, Geraldo Alckmin, enfrentou uma segunda crise hídrica muito forte e chamou um grupo de técnicos para que, em um mês, preparassem um conjunto de projetos hídricos.
Com os projetos prontos, ele embarcou para Brasília, pois precisava pedir o assentimento da então presidente Dilma Rousseff, pois os projetos envolviam um pedido de financiamento do BNDES. Ela acolheu os projetos e pediu uma semana para que seus técnicos os estudassem. Terminado esse prazo, ela disse que eles haviam concordado e que o financiamento seria liberado. Nesse entretempo, houve uma pequena negociação política.
Outro exemplo: todos os anos, nós assistimos à marcha dos prefeitos para Brasília, quando eles, com o chapéu na mão, vão rumo a capital para pedir repasses que não estão em dia e uma série de outras coisas. Isso porque os municípios são pobres.
Enquanto isso, a União é muito rica. Juridicamente, a Constituição especifica que ela tem sete tributos, se bem que ela não utiliza o imposto sobre grandes fortunas, além das contribuições. Os estados e os municípios possuem três tributos cada.
Há um movimento de centralização que nasceu com a instauração da República em 1889 e que nunca arrefeceu, pelo contrário. No dia 10 de dezembro de 1937, houve a queima das bandeiras e dos hinos regionais no Rio de Janeiro. O presidente da época, Getúlio Vargas, disse que os problemas regionais haviam acabado e que, a partir daquele momento, só havia os problemas nacionais. Não há vergonha nenhuma em admitirmos que o Brasil é um estado unitário, mas esse é um grande entrave.
O anteprojeto de Rubens Gomes de Souza é de 1953. Há 70 anos que foi feita a reforma, que do nada e do caos que era aquele momento vivido, deu origem ao CTN que realmente sistematizou o direito tributário.
Por que é tão difícil mexer no sistema tributário brasileiro?
Por uma razão muito simples. O sistema tributário brasileiro assegura as autonomias das pessoas políticas de direito constitucional interno. Da União, que convive com 26 estados, com o Distrito Federal e com os mais de 5.700 municípios.
Uma vez, num seminário no Rio Grande do Sul, eu me encontrei com Nelson Jobim, na época ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso. Como todo presidente que chega propõe uma reforma tributária, eu estava ansioso para ouvir sua palestra, já que ele era conhecido por ser um grande orador. O problema é que ele estava murcho, sem ser o grande orador que eu havia imaginado, defendendo a reforma tributária proposta pelo presidente.
No jantar, eu sentei ao seu lado e lhe perguntei se ele estava animado com a reforma tributária. Foi quando ele me disse:
Por exemplo, os estados não se dão. Seus interesses são regionais, sendo que se escolhe como valor a uniformização. Como se pode uniformizar o Brasil, sendo ele regionalmente diverso? São estados com tradições e culturas diversas. Com sotaques, costumes e histórias diferentes.
Sinceramente, por mais que se queira o bem do Brasil e que tudo corra da melhor maneira possível, falar em reforma tributária é algo que sequer tem sentido. Recentemente, nós tivemos o Congresso do IGA–Idepe (Instituto Geraldo Ataliba – Instituto Internacional de Direito Público e Empresarial). Todas as pessoas que dele participaram foram contra essa reforma, com poucos tributos e com um fundo que fará o repasse.
Os repasses não são bem-vindos na experiência brasileira Há poucos dias, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, disse que não quer viver de mesada. Os estados e os municípios querem exercitar as suas autonomias. Eles são autônomos e só devem respeito à Constituição. Mesmo assim, a União, do jeito que está, faz do Brasil um estado que se declara federação, mas agindo como estado unitário.
O que deveria ser priorizado numa reforma tributária?
Primeiro: prestigiar a experiência que nós construímos, mas, naturalmente, fazendo a racionalização no âmbito das próprias competências, ou seja, a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios racionalizariam os tributos das suas competências. Contra essa iniciativa, vai pelejar a circunstância da curva que mencionei, com todos sabendo que a arrecadação vai diminuir um pouco no início.
Outra questão é que querem acabar com os benefícios fiscais num país que precisa deles, pois é diferente em termos regionais. Em muitas situações, os incentivos fiscais são super bem-vindos; no entanto, estão dizendo que eles atrapalham. Alguns benefícios atrapalham, pois excesso é veneno.
Eu não duvido que a reforma seja aprovada, mas aprová-la é uma coisa, e implantá-la é outra. O que existe no Brasil em termos de sistema tributário terá que ser virado de cabeça para baixo. Eu faço votos de que tudo corra bem, mas se tudo for como está sendo falado, nós vamos enfrentar uma situação caótica.
O sistema tributário brasileiro é conectado em reuniões internacionais. Eu sempre ouvi o grande interesse e a grande curiosidade pelas soluções que o Brasil criava. Por exemplo, o IVA é um tributo que costuma ser um só para um país, sendo que no Brasil cada estado e o Distrito Federal tem o seu, havendo 27 focos ejetores de normas. Por exemplo, a legislação do ICMS de São Paulo tem quase um palmo de altura.
Se querem fazer reforma, a Constituição dá todos os meios e instrumentos para que se faça isso. Ela é estática quando paralisamos para estudá-la, mas é dinâmica como todo acontecimento social que vai mudando. Eu faria uma modificação mansa e sequencial, como pretendia o professor Michel Temer.
A União pode mexer no PIS/Cofins tranquilamente. Ela pode pegar os regulamentos que precisam, realmente, ser enxugados como do Imposto de Renda, do Imposto sobre Produtos Industrializados e do Imposto sobre Operações Financeiras. Seria uma reforma sequencial sem nenhum açodo e sem nenhuma preocupação de maior urgência, procurando respeitar os princípios constitucionais. Essa seria a solução.
Não é uma solução mágica e palpável, ou uma solução que pareça boa no exame do primeiro momento, mas eu acho que é a única que funciona. Veja, nós já passamos de meio século lutando pela reforma tributária, sem que ela desse o terceiro e quarto passo.
Uma curiosidade: o presidente Fernando Henrique Cardoso, quando senador, lutou muito para que fosse implantada, na competência da União, o imposto sobre grandes fortunas. E conseguiu. Quando ele se tornou presidente, nos primeiros dias da sua presidência, ele montou uma comissão para instituir esse imposto.
Essa comissão começou a ver que havia sérios problemas, pois esse imposto mexeria com diferentes tributações, como de renda e de bens. No final das contas, a expectativa do que seria arrecadado não era auspiciosa, e a comissão foi dissolvida.
Aí veio o presidente Lula, que também disse que ia fazer o imposto sobre grandes fortunas. Não conseguiu fazer na sua primeira presidência e nem na segunda. Esse imposto está lá, dando sopa na Constituição. Isso porque “grande fortuna” é um valor, e os valores são indefiníveis. Nós podemos chutar os valores por aproximação ou por associação com outras entidades afins, de forma a pressionar até que tenhamos uma noção concreta do que seria esse valor.
Nas campanhas eleitorais, todos anunciam a reforma tributária. Até aqueles que nem poderiam pensar nisso, pois não têm competência isso. Como um candidato a prefeito vai fazer reforma tributária no Brasil?
Eu participei de uma comissão do Senado, constituída pelo presidente José Sarney, quando ele era presidente da casa, que trabalhou por quase um ano em reuniões sérias e demoradas. O tema era o fortalecimento da federação. Fizemos um trabalho intenso, que foi entregue ao presidente Sarney, sendo que nada andou, pois os interesses na área tributária são enormes.
Se a reforma tributária for aprovada, eles vão aprovar o nome “reforma tributária”, pois o resto vai ficar para as leis complementares. Quando essas leis vão ser estabelecidas? O imposto sobre grandes fortunas também ficou “nos termos de lei complementar”, mas não se tomou a menor iniciativa (artigo 153, inciso VII)
Essa reforma que está para ser votada na Câmara foi devidamente estudada?
Não, essa reforma não foi devidamente estudada. Por exemplo, o que seria um aumento de arrecadação? Eles dizem que é um valor, quando na verdade é um resultado, que pode ser positivo ou negativo. Colocar um aumento da arrecadação é colocar um resultado como valor. Isso não os preocupa. Quando se diz que a eficiência será aumentada, que eficiência é essa? Isso precisa ser discutido e estudado.
Como te disse, no Congresso do IGA–Idepe, com inúmeros conferencistas, todos os nomes mais significativos foram contrários a essa reforma tributária. Não simplesmente contrários, mas radicalmente contrários.
Se o Brasil pretende ser uma federação, como ele pode ter até quatro impostos, unificados, com a União repassando depois parte da arrecadação? Veja que o poderio da União aumenta. Ela vai fazer exigências, e ela faz. Eu dei o exemplo do problema hídrico. A palavra “repasse” não soa bem entre os políticos.
Eu não imaginava que a reforma tributária chegasse ao ponto em que chegou. Uma reforma é uma coisa tão delicada. É mexer na nossa Constituição, que é boa e cheia de valores que precisam ser aplicados e testados.
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