A morte de Cacá Diegues deixou de luto não somente o cinema nacional, como todos os que estavam habituados a testemunhar sua obra magistral nas telonas. Cacá foi um dos maiores cineastas brasileiros de todos os tempos e seu legado na sétima arte é digno para pesquisas acadêmicas, dissertações de mestrados e teses de doutorados. Cacá foi, antes de tudo, um dos maiores pensadores do Brasil.
Em seu velório na Academia Brasileira de Letras, ele ocupava a cadeira número 7, desde 2018, que pertencera a Euclides da Cunha e Nelson Pereira dos Santos, Betty Faria, Zezé Motta, Claudia Abreu, Beth Goulart, Glória Pires, Gilberto Gil, Malu Mader, Marcos Palmeira, Marieta Severo, Silvia Buarque, o prefeito Eduardo Paes e uma legião de fãs foram até lá se despedir do criador de, dentre outros sucessos de público e de bilheteria, Quando o Carnaval Chegar (1972); Joanna Francesa (1973); Xica da Silva (1976); e Bye Bye Brasil (1979).
Bastante emocionada, Zezé Motta resumiu, em poucas palavras, todo o seu sofrimento com a partida não apenas do cineasta, mas, sobretudo, do amigo querido com quem conviveu por décadas: “Xica da Silva é, será sempre minha eterna fada madrinha. Foi fundamental para a construção da primeira grande imagem da “escrava que virou rainha” diante da opinião pública. Em 2025, ela vai marcar presença, viva esta grande mulher que foi Xica. Minha eterna gratidão sempre ao gênio Cacá Diegues por me presentear com essa protagonista.”
Nascido em Maceió, em 19 de maio de 1940, Carlos José Fontes Diegues iniciou sua carreira no final dos anos 1950 e que se estendeu até os seus últimos momentos. Planos recheavam a cabeça de Cacá.
O cineasta estudou no Colégio Santo Inácio, antes de ingressar no curso de Direito da PUC-Rio, onde exerceu a presidência do Diretório Estudantil. Durante sua trajetória acadêmica, criou um cineclube e deu os primeiros passos no cinema ao lado dos saudosos David Neves e Arnaldo Jabor.
Além disso, foi editor do jornal O Metropolitano, publicação da União Metropolitana de Estudantes, e integrou o Centro Popular de Cultura da UNE. Sempre atento à realidade, nos anos 1950, tornou-se um dos fundadores do Cinema Novo, movimento cinematográfico que contou com Glauber Rocha, Leon Hirszman, Paulo Cesar Saraceni e Joaquim Pedro de Andrade. Uma geração verdadeiramente extraordinária e revolucionária.
Em 1961, dirigiu, em parceria com David Neves e Affonso Beato, o curta-metragem Domingo, uma das primeiras obras do movimento. No entanto, como diretor solo, iniciou sua bem-sucedida trajetória em 1962, dirigindo o episódio “Escola de Samba Alegria de Viver” no longa Cinco Vezes Favela. Paralelamente, Cacá também atuava como jornalista e crítico, escrevendo ensaios e manifestos sobre cinema. Era articulista em O Globo, e seu último artigo foi publicado no domingo anterior ao seu falecimento.
Com a promulgação do famigerado AI-5, em 13 de dezembro de 1968, Cacá e sua primeira esposa, a cantora Nara Leão, se exilaram na Itália e na França. O casal só retornou ao Brasil na década de 1970.
Em 1978, Cacá inventou, em entrevista ao Estado de São Paulo, a expressão “patrulhas ideológicas” para denunciar alguns setores da crítica que desqualificavam os produtos culturais não alinhados a certos cânones da esquerda política mais ortodoxa. Nesse período de início da redemocratização do país e de renovação do cinema, realizou Chuvas de verão (1978).
Em 1981, foi jurado no Festival Internacional de Cinema de Cannes, na França. Durante a crise do cinema brasileiro nos anos 1980, durante o governo Fernando Collor, o realizador produziu filmes de orçamento reduzido, como Um Trem para as Estrelas (1987) e Dias Melhores Virão (1989). Antes, em 1984, realizou o épico Quilombo, uma produção internacional comandada pela Gaumond francesa, um velho sonho de seu idealizador.
Após a morte de Nara Leão, com quem teve dois filhos, Isabel e Francisco, Cacá casou-se com a produtora Renata Almeida Magalhães, em 1981, com quem teve uma filha, Flora.
Logo após o desmonte da Embrafilme, na década seguinte, Diegues voltou a ter sucessos comerciais com Tieta do Agreste (1996) e Deus é Brasileiro (2003). Ao longo de sua trajetória, seus filmes representaram o Brasil em sete candidaturas ao Oscar, o maior número já alcançado por um cineasta brasileiro.
O ator Stepan Nercessian deu um comovente depoimento sobre sua ligação com Cacá Diegues:
Um privilégio muito grande, para mim e para qualquer artista, qualquer companheiro que tenha tido a oportunidade de trabalhar com Cacá, ser visto com aquele olhar gentil. Eu considero o Cacá uma das pessoas mais gentis que conheci na minha vida, um cineasta com uma delicadeza fora do comum. Cacá era muito um homem de equipe. Ele não procurava fazer nada individualmente, queria sempre fazer o coletivo, tanto que isso foi mostrado na carreira dele: o amor que ele tinha ao Brasil e aos atores.
A maioria das duas dezenas de filmes de Cacá foi selecionada por grandes festivais internacionais, como Cannes, Veneza, Berlim, Nova York e Toronto, e exibida comercialmente na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina — o que o torna um dos realizadores brasileiros mais conhecidos no mundo.
Na ocasião da visita do Papa Francisco ao Rio de Janeiro para a Jornada Mundial da Juventude, Cacá documentou a passagem do Pontífice no Brasil, resultando no documentário Rio de Fé (2013). Em 2016, o diretor recebeu a homenagem da escola de samba Inocentes de Belford Roxo, pelo grupo de acesso A, com o enredo Cacá Diegues – Retratos de um Brasil em cena!, desenvolvido pelo carnavalesco Márcio Puluker, ficando em 9º lugar no concurso.
Em 2018, Diegues lançou o longa O Grande Circo Místico, baseado no poema de Jorge de Lima e no espetáculo musical de Chico Buarque e Edu Lobo. Em 2019, encabeçou o projeto Cine Academia Nelson Pereira dos Santos, visando oferecer sessões de clássicos do cinema brasileiro em sessões promovidas pela ABL, abertas ao público e seguidas de debate, realizadas no Espaço Itaú de Cinema do Rio de Janeiro.
Cacá deixou um último filme incompleto, intitulado Deus ainda é Brasileiro, que havia começado a ser produzido em novembro de 2022, mas teve suas gravações paralisadas, no ano passado, por questões orçamentárias. O filme tem previsão de lançamento para o segundo semestre de 2025.
O cineasta foi oficial da Ordem das Artes e das Letras da República Francesa. Também foi membro da Cinemateca Francesa. O governo brasileiro também lhe concedeu o título de Comendador da Ordem de Mérito Cultural e a Medalha da Ordem de Rio Branco, a mais alta do país. Cacá traduziu o brasileiro com sensibilidade em suas obras. Que seu legado continue iluminando a sétima arte. Descanse em paz.
Paulo Alonso, jornalista, é reitor da Universidade Santa Úrsula.