Agenda extemporânea

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A falta de sintonia do governo com a realidade da crise brasileira tende a agravar a situação do País. No mesmo momento em que reconhece que sua equipe de governo é incapaz técnica e politicamente para enfrentar os graves problemas econômicos e sociais – e cogita da reforma ministerial – procura novamente exumar o cadáver do parlamentarismo, que parecia enterrado desde 1993.
Neste sentido, acaba de ser instalada, na Câmara dos Deputados, Comissão Especial destinada a examinar a PEC nº 20-A/95, do deputado Eduardo Jorge (PT-SP), que pretende implantar aqui o sistema parlamentarista de governo. Trata-se de uma segunda tentativa de fazer tramitar a emenda, novamente sob a presidência do deputado Franco Montoro, que, aos 83 anos de idade, empresta sua respeitabilidade e teimosia a uma causa sem mérito, a não ser o de desviar a atenção das verdadeiras causas da crise brasileira.
A intenção é cumprir uma das etapas preconizadas na pequena publicação do vetusto e experiente deputado Montoro, denominada A Indispensável Reforma Política, que o governo tenta aprovar no Congresso. Consiste em vasto conjunto de proposições – oito emendas constitucionais e vários projetos de lei – cujo sentido é conter os impactos positivos do processo de democratização do país. No geral, visa-se reduzir a participação dos eleitores e restringir a oferta política em matéria de opções de partidos e candidatos, a pretexto de dar maior objetividade ao processo decisório congressual.
Seus instrumentos principais são o voto facultativo – felizmente já condenado, por inconstitucional, pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado -, o sistema distrital misto e a proibição de coligações nas eleições parlamentares. Isto levaria inevitavelmente à existência de apenas três ou quatro partidos políticos e a um número igualmente pequeno de candidatos a deputado federal e estadual, bem como a vereador, em cada distrito onde o eleitor fosse inscrito, nas eleições proporcionais.
O parlamentarismo acabaria de fechar o sistema político brasileiro. Ainda que a proposta do deputado petista preveja a eleição direta do presidente da República, com funções muito limitadas, como em Portugal e na França, este semi-parlamentarismo afastaria o eleitor da escolha direta de quem tem poder de fato.
Na visão dos defensores da mudança, além do sistema proposto evitar os “erros” praticados pelo eleitorado, no passado, o parlamentarismo seria uma válvula de escape para conservar o atual grupo no poder, em caso de acirramento da crise atual.. No entanto, a justificativa formal para aluir o presidencialismo brasileiro é a de eliminar a instabilidade institucional e melhorar as relações entre os poderes Executivo e Legislativo.
Em 1639, o pensador político francês Gabriel Naudé escreveu suas Considerações Políticas sobre o Golpe de Estado. Fez uso do termo para referir a uma das manifestações da Razão de Estado ou Interesse do Estado, outras novidades conceituais dos tempos sombrios das guerras religiosas na França. Golpe de Estado, especificamente, descreve os atos dos governantes cujo único objeto é reforçar seu próprio poder, por quaisquer meios.
Mais tarde, quando o Estado de Direito e o constitucionalismo foram inventados e postos em prática, golpe de Estado passou a significar violação deliberada das formas constitucionais por um governo, assembléia ou grupos de pessoas com autoridade, tendo como objetivo manter ou ampliar seu poder. Na América Latina, como a maioria dos golpes foi militar, a palavra ficou associada a pronunciamentos e atitudes castrenses.
A emenda parlamentarista, alquimia antidemocrática que o laboratório político do deputado Franco Montoro quer transformar em substância institucional legítima, é do ponto de vista ético-político um verdadeiro golpe, na acepção de Naudé, ainda que sem qualquer envolvimento militar, como foi a experiência fracassada de 1961.
Os golpistas da reforma política perderam as estribeiras e fingem que esqueceram que o eleitorado brasileiro foi chamado, em 1993, a escolher entre república e monarquia, de um lado, e presidencialismo ou parlamentarismo, de outro. Isto decorreu da sábia decisão da Assembléia Nacional Constituinte que, não sentindo segurança suficiente para definir em nome do povo sobre a forma e sistema de governo, resolveu devolver ao poder constituinte originário – ou seja, aos cidadãos eleitores – a responsabilidade da escolha destas instituições fundamentais.
A deliberação tomada no plebiscito de 1993, portanto, foi definitiva em favor do regime presidencialista. Do ponto de vista jurídico, quando não ético, o resultado do plebiscito adquiriu a força constitucional de uma cláusula pétrea, que simples emendas não podem questionar, quanto mais revogar.
A instalação da Comissão Montoro, assim, caracteriza-se como ato preparatório de golpe de Estado: valer-se o governo de violação de formas constitucionais vigentes para reter seu poder, diretamente ou através de seus partidários, prepostos ou associados.
Desde que assumiram o poder, o presidente Fernando Henrique e sua maioria congressual conluiaram-se para retalhar a Carta de 88. Adotando programa de reformas semelhante ao adotado por outros países que surfaram na mesma onda neoliberal, FHC já transformou os artigos da ordem econômica e os capítulos dos direitos sociais visando a oferecer aos investidores estrangeiros um mercado extenso e sem peias regulatórias, com relações sociais de produção precárias e com livre transito para a especulação financeira.
As coisas não deram certo em função da lógica própria de quem orienta os capitais especulativos. Ao invés de rever o projeto original, porém, o Governo FHC decidiu aprofundar o processo de entrega do controle da economia ao capital estrangeiro e armar um dispositivo de segurança política para a hipótese da crise se tornar aguda. O PSDB e demais partidos da base parlamentar do governo acreditam que manteriam sua maioria esmagadora no Congresso e diante de uma virada do eleitorado conservariam o poder no regime parlamentarista.
Este golpe não podemos permitir.

Luiz Alfredo Salomão
Deputado federal (PDT-RJ) e diretor da Escola de Políticas Públicas e Governo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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