Aglomeração na Covid-19 tem endereço psíquico

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praia durante Covid (foto: Tomaz Silva/ABr)
Praia durante Covid (foto de Tomaz Silva, ABr)

Desde que o mundo foi acometido pelo coronavírus, a humanidade não é mais a mesma, e o velho mundo a cada dia vai ficando para trás. Mas será que na cabeça do ser humano é como virar a página do livro?!

Estamos muito longe disso. E o que observo em meus atendimentos online e no consultório é uma adaptação abrupta; alguns sofrem, há sentimento de perda, dor, muita frustração, impotência e negação da realidade. O luto pelos entes queridos que partiram.

Gente suspirando de saudade do que se foi, do churrasco com os amigos, tomar chope na mureta da Urca e andar pelo calçadão de Copacabana e Ipanema sem máscara, ou qualquer resquício que possa remeter à perda de liberdade.

Angustiados e com anseios sobre a incerteza do futuro. Fatores que perpassam pelo mercado de trabalho, sustento da família, endividamento para salvar o negócio e preocupações sobre as consequências a longo prazo de quem contraiu a Covid-19 e sobreviveu.

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A negação

 

Vivemos em uma sociedade cuja frustração e dor são evitadas. Principalmente pelos jovens, que gostam de ter seus pedidos atendidos de forma instantânea. Nesse momento, necessitam lidar com a frustração do isolamento social em flexibilização parcial.

Em alguns casos, os próprios pais não preparam o jovem para ouvir não. De alguma forma, compensam a ausência pela atribulação profissional, por exemplo, dando sim ao jovem. “Sim, eu te dou um computador novo”. “Sim, pode escolher o carro que quiser”. Sim, o mundo aos seus pés.

Dessa forma, como esse jovem vai aceitar a frustração de não poder sair de casa e aglomerar em bares e restaurantes?! Ele vai, não suporta a frustração, o “não pode” e põe em risco à própria saúde e a do próximo.

Negar a realidade é um mecanismo de defesa psicológico para evitar o sofrimento e/ou não precisar lidar com o acontecimento. O peso da responsabilidade também tende ser reduzido quando negamos a gravidade da situação. É complexo para a mente humana lutar contra um vírus invisível que simboliza tantas transformações a iniciar por si.

 

Aglomerar é uma maneira

 

Uma maneira de dizer que desejo viver a vida, aproveitar em todas as suas formas, “custe o que custar”, que posso ir e vir, sou livre, anestesiar a dor, faço o que quero na esfera da ilusão de imortalidade. Como se fosse imune ao vírus, que a Covid-19 só acontece com o outro.

Então, o ser aglomera em uma espécie de vida paralela, criando uma realidade falseada, encobrindo às mazelas trazidas pelo novo coronavírus.

 

Camadas profundas vieram à tona

 

Se enfrentar e assumir que precisávamos rever o ritmo de vida tem sido uma tarefa um tanto quanto difícil para grande parte das pessoas. O imediatismo e os prazeres expressos oferecidos nos encontros com o mundo atentam contra a imperturbabilidade do íntimo.

Com a chegada do coronavírus e a iminência da finitude, observo um retorno para dentro. Para a permanência, construção, resgate de afetos e realinhamento do que foi perdido nesse longo processo sem data para chegar ao fim.

Estamos distantes de sermos uma sociedade adepta aos cuidados com a saúde mental e emocional. Todavia, percebo um movimento de início à caminhada de compreensão dos sentimentos e ser melhor consigo. Somente assim, seremos mais empáticos com o outro.

Quem sabe possa ser um dos grandes aprendizados que o coronavírus trouxe?! Deixo a reflexão.

 

Priscila Valério é psicóloga.

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