No último artigo, informamos sobre a conquista de uma denominação de origem (DO) pelos vinhos espumantes de Pinto Bandeira, e eu comentei como esse conceito ainda é pouco compreendido pelo consumidor brasileiro, a despeito da sua importância, que merecer ser mais esclarecida e divulgada. Lembrei-me de artigo que escrevi para uma revista científica da Uerj há alguns anos, usando a análise semiótica para apontar algumas diferenças entre marcas comerciais e denominações de origem. Achei interessante usar o mesmo viés comparativo, sem o teor acadêmico, para falar um pouco mais sobre o tema nesta coluna.
As marcas comerciais são um recurso praticamente obrigatório para que quaisquer produtos entrem no mercado, pelo simples fato de que elas dão nomes aos objetos, serviços, entidades, num mercado que foi se alargando progressivamente, de uma região a outra, de um país a outro, de um continente a outro. À medida que o contato intersocial extrapola as fronteiras de um conhecimento relacional limitado (o doce de leite da Dona Maria, a venda do seu Zé), maior necessidade se faz de se criar e divulgar uma identidade para as coisas. Identidade esta trabalhada por um repertório capaz de justificar o seu nome e favorecer a sua memorização.
Trata-se de um símbolo que será representativo de um modus operandi do produto/serviço/instituição e que busca sintetizar a sua proposta conceitual por um trabalho de associação de valores a uma imagem e ao que ela representa. Requer um efetivo trabalho de comunicação a ser empreendido, de modo a construir no imaginário do público a relação entre algo concreto, funcional, utilitário e uma abstração eleita como sua identidade simbólica.
O mundo do vinho chegou ao século 20 com notável status de qualificação de produção, tendo como referencial de excelência algumas regiões consagradas mundialmente. No entanto, nas últimas décadas do século 19, a praga da Phylloxera vastatrix fez um estrago medonho, dizimando vinhedos no mundo todo e provocando escassez de alguns produtos, o que acabou por facilitar falsificações. As fraudes acontecem de tempos em tempos neste e em outros universos e foram um dos motivadores para o aprimoramento de um sistema de registro e reconhecimento de uma especialidade produtiva em determinado território. Assim evita-se empreendimentos oportunistas de quem não está naquele território e não estaria enquadrado nesse sistema de produção.
Assim, em 1935, a França inaugurou, o mais complexo sistema de denominações de origem controlada (AOCs) até então criado, aprimorado de outras experiências e que teve o campo do vinho como protagonista. Este sistema foi estendido aos demais campos agroalimentares franceses e serve de modelo para a União Europeia e para o mundo, como é o caso das indicações geográficas brasileiras.
Esses “signos de origem” funcionam como marcas identitárias, mas de natureza distinta das marcas mercadológicas. A diferença, que considero fundamental, é que ela não vem de uma iniciativa particular de empreendimento, ela é um registro cultural e político de um saber-fazer desenvolvido coletivamente ao longo do tempo e intimamente conectado com as características inatas àquela região – seus contornos geográficos, suas influências culturais e preferências gustativas.
Apesar de estar pautada também por objetivos estratégicos de consolidação de uma imagem no mercado, ela tem pretensões que extrapolam esses interesses, pois esse produto se propõe como um nativo mais “legítimo” daquele local, uma vez que nasce de seu solo, respira seu clima e representa um estilo cultural constituído ao longo do tempo. Esse caráter patrimonial se consolida em boa parte dos casos, com a utilização do nome das regiões, vilarejos e locais nos quais ele obrigatoriamente deve ser desenvolvido. A cidade de Bordeaux nunca será só cidade, bem como o seu vinho nunca poderá ser de outro lugar, carrega essa identidade no seu imaginário.
Algumas denominações aportam o nome do local de origem apenas, outras, cuja produção está muito identificada com alguma característica do produto, podem fazer uma associação entre cepa e região, como Brunello di Montalcino, em que Brunello é o nome da uva Sangiovese ali e Montalcino a cidade da Toscana em que tradicionalmente o vinho é produzido.
Há ainda algumas áreas que ficam tão identificadas com um tipo de produto que quase ganham o nome do produto. É mais raro, mas este é o caso da AOC Muscadet, da região chamada Nantais (de Nantes), no Vale do Loire, França. A cepa Melon de Bourgogne, apesar de não originária dali, adaptou-se muito bem a essa área próxima ao oceano Atlântico, dando origem a um vinho muito identificado com o frescor e a salinidade marítima. Ganhou um nome próprio: Muscadet uva e Muscadet AOC. Boa parte dos produtos, entretanto, vão associar a Muscadet a locais específicos nos quais são produzidos, como, por exemplo, AOC Muscadet Sèvre et Maine – leia-se: o vinho estilo Muscadet, feito da uva Muscadet, produzidos numa área atravessada pelos rios Sèvre Nantaise e Maine.
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Muito interessante! De certa forma é uma garantia da procedência do conteúdo da garrafa. O rigor de se fazer um vinho de acordo com as regras e normas da D.O. como uvas que poderão ser utilizadas no processo, tempo de amadurecimento em barricas e envelhecimento nas garrafas, etc. até estarem prontas para o mercado. Parabéns pela ótima didática.