Argentina, Brasil. Câmbio!

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Ao criar a paridade, 1 dólar = 1 peso, a Argentina deflagrou uma experiência monetária – e neoliberal – sem se dar conta que havia reintroduzido um “novo” produto – o velho dólar, agora como mercadoria -, que ao ficar mais barato nos anos seguintes, fez crescer sua  demanda, gestando a crise final que explodiu sua cotação para quase 4 pesos por dólar, aliada esta à falta da divisa para honrar os depósitos nesta moeda, culminando, por fim, neste elevado desconto de 75% que propõe a sua dívida externa. o  A plena conversibilidade das moedas aliada a seu livre trânsito tem sido prática comum entre países desenvolvidos com elevados PIBs e robustos volumes de comércio exterior, como nos países europeus, por exemplo. Apesar disto, o marco alemão se transformou de 1970 a 1990 na moeda européia referencial, ao lado do franco suiço e da libra inglesa, ambas sobreviventes ainda hoje.  As demais moedas européias, importantes naquele contexto, não alcançaram status  internacional mais abrangente, tornando viável a adoção do euro ao final da década de 90, que a todas extinguiu, exceto libra e franco suiço.
Pois na década em que economias européias fortes, 1/3 do PIB mundial, susbtituem suas moedas por uma única, para facilitar relações de troca com o hegemônico dólar e com o ien japonês, que faz a pobre América Latina ? Por primeiro a Argentina em 1990 e 4 anos depois, o Brasil, atrelam-se ao dólar fixando-lhe um valor de troca face a suas moedas,  somente sustentado pela entrada de recursos estrangeiros, obtidos quer pela venda de empresas estatais a valores discutíveis ou baixos, quer pela tomada, a juros elevadíssimos, de empréstimos ao exterior os quais, em boa parte, eram e são recursos expatriados e depositados no exterior. Na América Latina, economias com moedas aviltadas elegeram sempre o dólar americano como reserva de valor e defesa contra crises internas, desembocáveis em confiscos de poupança. Na Guerra das Malvinas, em 1981, a Argentina fora ameaçada de perder seus depósitos exterior à época estimados em US 10 bilhões. Prática antiga de transferir recursos ao exterior que a nova legislação cambial de 1990, ao instituir a paridade, legitima, consagra e acelera.
No caso da Argentina, por que manter depósitos no país e em peso se a lei permitia a conversão para dólar, mercadoria cada vez mais barata por força da paridade legal e da oferta de divisas via empréstimos ao exterior ? Assim, os depósitos em dólares feitos nos bancos da Argentina evoluiram de US 28,3 para 47,8 bilhões apenas entre 1996 e 2001, enquanto os depósitos em pesos evoluiram de 25,9 para 18,2 bilhões em idêntico período. Já as reservas líquidas saíram de 13,5 para 15,1 bilhões de dólares, neste período, tendo alcançado US 22,8 bilhões em 1999, e a dívida do governo, para honrar estes compromissos, saltara de US$ 97 para 136 bilhões, entre 1996 e 2001. (“Como dolarizar en Argentina”, Schuler  y Hanke, 20.12.01)  Entretanto, com o risco de calotes ou confiscos, por que manter depósitos em dólares no país ? Urgia remetê-los ao exterior. Estima-se que os argentinos tenham remetido ao exterior cerca de US$ 85 bilhões, quase 1/3 do seu PIB, que evoluíra de US$ 272 para 289 bilhões, entre 1996 e 2001, ou 3,67% em 5 anos. A partir de um certo momento a economia argentina passou a girar com um só objetivo: comprar dólares baratos, por força de lei,  e expatriá-los, não só os da poupança financeira, mas também os resultantes da venda de ativos e bens reais. Os imóveis se desvalorizaram. Foi o tempo em que George Soros comprou terras na Argentina. Enquanto os empréstimos vindos do exterior liberavam dólares para a gigantesca expatriação em curso, com o aval escandaloso do FMI,  –  cujo recente “mea-culpa” dá a dimensão do fracasso- , incendiava-se a “corrente da felicidade”,  levando o Brasil, mais tarde,  a lhe copiar o Plano. Como toda  “corrente”, arrebentou, pois secaram os empréstimos externos que alimentavam a cadeia. Os mais espertos guardavam dólares no colchão, para evitar um confisco no incerto amanhã, como ocorreu na prática.   Filme lá, filme cá:  efeitos Tango e  Samba. Cheguei a pensar que a liquidação da Argentina, ainda em curso, – agravada por sua proposta do desconto de 75% na sua dívida externa –  levá-la-ia a adotar algum tipo de socialismo,   num contexto mais amplo latino-americano em que o Brasil permanecesse neoliberal e os demais países evoluíssem para regimes de esquerda, surgindo dois grandes blocos de confronto, tão a gosto dos vendedores de armamentos.  Deveríamos continuar considerando tal alternativa geopolítica para a América Latina em virtude da economia de “terra arrasada” imposta à Argentina, e a outros países como a  Colômbia ?
A nossa cópia à Argentina foi contudo mitigada. Em 1998 quando o Plano Austral já dava sinais de cansaço, e a crise russa provocava a fuga do capital especulativo dos países emergentes, baixando as reservas brasileiras de US$ 70 para 35 bilhões, soara a hora de liberar, no Brasil,  o câmbio engessado, – comprado e expatriado por especuladores a cotações baixas  – para o agora câmbio flutuante, – saltando a moeda brasileira de 1,2 para 3 reais por dólar, oferecendo novos e substanciais ganhos ao capital destes especuladores quando de seu reingresso na economia nacional, prática ainda pouco criticada. (Sem falar no ganho sobre a dívida interna do Governo em títulos cambiais.)
Por conta desta liberdade cambial, segundo o BACEN,  já possuem os investidores do país, notadamente os paulistas, US$ 82 bilhões depositados no exterior oficialmente, valor que, cotejado às oscilações cambiais das reservas  nestes últimos 5 anos de câmbio flutuante aliado à liberdade para expatriar recursos, dá a medida da atuação do capital especulativo nacional expatriado via câmbio, girado a partir de praças no exterior. Cresceu o volume, pois no início da década de 90 estimava-se que o capital expatriado do Brasil fosse da ordem de US$ 20 a 40 bilhões. Mais do que dobrou com a nova liberdade da remessa. ( A CPI do Banestado auxiliaria na análise deste processo, mas …) E através de diversos mecanismos financeiros adotados pelo país desde 1994, parcela deste capital tem a liberdade de especular com ativos brasileiros, entrar e sair, especular com títulos públicos e privados no exterior, e assim provocar turbulências financeiras e crises daí derivadas.  E sem pagar a inexorável CPMF, além de menor a nenhum imposto de renda. Acrescente-se ao valor informado pelo Bacen o que saiu informalmente do país e aí teremos o volume do capital financeiro especulativo que hoje governa o país.
E governa com o apoio do Banco Central, que legisla a seu favor. Foi-se o tempo do capitalismo industrial e jurássico do século XIX, questionado por Marx. O tempo é de especulação, e a essência dos modelos econômicos contemporâneos, ao invés de se ocuparem de desenvolvimento, busca desvendar e construir modelos especulativos de sucesso. Assim são formados os jovens economistas nas sociedades mais dinâmicas.O comando do poder nacional pelo capital especulativo  não impede que a classe política coloque barreiras aos abusos, abrindo debates que ultrapassem as singelas fronteiras de sabatinar, no conservador Senado, os dirigentes do Banco Central, com questões que jamais revelaram estar em curso uma mudança de modelo, do capitalismo de estado ao especulativo e neoliberal. Questionamentos que seriam fundamentais,  inicialmente  neste aspecto da transferência de recursos ao exterior, embora parcela da classe política se beneficie deste “status quo”, – vide CPI do Banestado – colaborando, ao participar da “base aliada” do governo, com os votos necessários para a sustentação e aprofundamento do modelo neoliberal em  expansão. (Vide m/art.ant.neste MM de 16.06.04: “O projeto paulista em expansão”)
Pois passados 18 meses de governo, baixados os juros de 26,5 para 16% – sem redução equivalente do “spread bancário” – (contra o qual não se indigna o Vice-Presidente), retomadas as exportações para níveis inimagináveis em janeiro de 2003 – a indústria automobilística neste 1o.semestre de 2004, bateu recorde histórico – estabilizado o fluxo de recursos com o exterior, é chegada a hora de, pelo menos,  mexer-se no câmbio,  no excesso da liberdade cambial, até porque o Real não pode ser comparado às três grandes moedas mundiais, que expressam quase 90% deste PIB. (As demais mudanças virão quando as forças progressistas tiverem maioria no Congresso.)
Ilegítima é a remessa dos que não logram obter ou produzir recursos no exterior, por exemplo. Estes não mereciam estar autorizados a remetê-los, de modo a que não se venha a avolumar ainda mais os US$ 82 bilhões oficiais que lá estão, quase 20% do PIB brasileiro, recursos que, outrora, seriam investidos no país. Sem contar ainda o capital que não é reportado ao Bacen. Eis um ponto de partida para começar esta mudança adiada, pois se não vier,  PT/Lula enfrentarão dificuldades na reeleição de 2006. Poderíamos esperar tal questionamento da classe política ? Ou face a avacalhação em que vivemos, começa a soar a hora de sonhar com a resposta nacionalista dos quartéis ? Ou de um novo Vargas ?  Em que horizonte todos eles se escondem ? O Brasil vê reduzir-se suas opções de mudança votadas em 2002   pela maioria da opinião pública, submetida à ditatura do capital especulativo, via bolsas paulistas e Bacen.  Haverá jeito ? Indubitavelmente, o Brasil não é para principiantes ! A nossa História conserva muitas lições. Mas o momento não é de livros de História, mas de economia e de textos de especulação. Vingar-se-á a História ? Ou é hora de aceitar o modelo neoliberal anglo-saxão com todo  seu formato transferidor de renda, empobrecedor e capaz de forçar, no longo prazo, a redução do crescimento das populações do terceiro mundo ? Que os economistas neoliberais não entendam tal mudança, vá lá. Mas a sociologia com seu príncipe FHC calados, “convenhamos”.  “O Brasil não conhece o Brasil.”

Paulo Guilherme Hostin Sämy
Especialista em bancos e comércio exterior, ex-conselheiro e ex-diretor da Associação Brasileira dos Analistas do Mercado de Capitais (Abamec).

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