Atualidade de Vargas: carta, tiro e mito.

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A leitura da Carta-testamento de Vargas, atribuível hoje a outro autor – que soube, entretanto, bem sintetizar seu pensamento – espanta por sua atualidade como análise da realidade brasileira, razão do impacto que provocou naquele trágico 24 de agosto de 1954, quando acompanhava o suicídio do Presidente, buscando explicá-lo.  Vejamos seus principais itens.
1. Desnacionalização do país: “Sigo o destino que me é imposto, depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. … A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se a dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei dos lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre”. (2o.parágrafo)
2. Evasão de divisas: “Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações “ad valorem” do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. (Deve-se referir à grande geada de 1953 que destruiu parte significativa desta lavoura) Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.”(3o. parágrafo)
3. Defesa do trabalho: “Iniciei o trabalho de libertação (dos grupos econômicos e financeiros internacionais) e instaurei o regime de liberdade social (expresso na legislação trabalhista e previdenciária). A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se a dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios”. (2o. parágrafo).
Em apenas dois parágrafos, sintetiza-se seu pensamento a partir da percepção, na realidade brasileira, da atuação do capital internacional aliado ao capital nacional para extrair riquezas nacionais, com a exploração da mão-de-obra, aviltando-lhe salários e benefícios sociais. Mas atenção: não apenas um conflito entre capital e trabalho, como ocorre nos países desenvolvidos, mas igualmente e, sobretudo um conflito pela entrega dos recursos nacionais a empresas estrangeiras, via Congresso. Conflito dual cuja resposta histórica nas décadas seguintes foi a dupla bandeira do nacionalismo e do trabalhismo, a buscar, junto ao trabalhador, já na luta por seus direitos trabalhistas, um aliado na defesa das riquezas do país. Portanto em dois sintéticos parágrafos explicita-se a ação de Vargas, gênio que foi da política nacional, ainda que sob a capa de caudilho usada com orgulho de vencedor. “Fiz-me chefe de uma revolução e venci…”
O nacionalismo e o trabalhismo de Vargas foram peças essenciais na construção de sua práxis política, não apenas para conquistar apoio dos trabalhadores, que deste modo tomavam consciência de todo o processo sócio-político e econômico do país, como ainda para conquistar o apoio das Forças Armadas, cientes, despertas e ativas em seu papel de defesa da soberania nacional, como o fizeram no processo revolucionário posterior a 1964.Nacionalismo e trabalhismo de Vargas: eis as bandeiras que o Brasil perdeu, mas que o gênio político daquele instigante caudilho manteve vivo décadas após a sua morte, pois sabia que seu ato trágico haveria de transpor o dia 24 de agosto de 1954, ecoando por muito tempo. A oposição a Vargas se calara por um longo período de nossa história, face à repercussão de seu ato, só voltando a ocupar a cena política no bojo da recente revolução neoliberal.
Vargas tinha plena consciência de sua grandeza e de sua genialidade política. Assim expressa o 1o. parágrafo da Carta-testamento, a ele atribuído em agosto de 1954: “Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes”. Consciência histórica de Vargas e de sua estatura política, do mito vivo que já encarnava em seu segundo mandato.Como Vargas poderia prosseguir na luta política? Como derrotar seus inimigos, calando-os? Conhecedor da História brasileira, agente principal dela ao longo de quase três décadas, Vargas conhecia seu poder pessoal, pois deposto em 1945 e recolhido a São Borja, lá fora buscado pelas forças políticas de 1950, para disputar a presidência com o Brigadeiro Eduardo Gomes, candidato oficial do governo do General Eurico Gaspar Dutra. E vencera, reapresentando aos políticos seu valor mítico junto às massas. Seu distanciamento político apenas o fizera crescer na medida em sua obra política apresentava frutos. O silêncio da distância ampliara a perspectiva.
Como repetir a estratégia usada entre 1945 e 1950 de se afastar da cena política e se tornar seu ator principal? “Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida”.(4o. Parágrafo) E no 5o. parágrafo, a consciência de seus valores de luta política: “Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta”.E no último parágrafo, começa a concluir e a desvendar a nova estratégia que urdira: “E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória”.
Pois Vargas queria permanecer na História como agente principal na defesa daqueles princípios, essência de seu catecismo. Mito, queria estender sua dimensão mítica para além de seu tempo de vida para continuar atuando: “Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto… Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história”.
Que outro político brasileiro alcançou a dimensão mítica de Vargas cuja doutrina nacionalista e trabalhista ocupou a cena brasileira até a recente revolução neoliberal que busca incessante o tiro de misericórdia capaz de enterrá-la, doutrina ainda viva em nosso ambiente político?
O assassinato de Vargas que a recente revolução neoliberal pratica, certamente haverá de avivar a relembrança de seu espírito indomável, líder supremo do nacionalismo e do trabalhismo brasileiros.  Consciente de que voltará e de que permanecerá atuante, assim se encerra o 5º. Parágrafo da Carta: “Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência”.A Carta se encerra emoldurando a dimensão mítica de Vargas: “E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória”, vitória do nacionalismo e do trabalhismo que defendera e que permaneceriam vivos como ocorreu após sua morte, até a recente revolução neoliberal. E por fim a fala do mito, disposto a influir na história do país, como ocorrera nas décadas seguintes a sua morte: “Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história”.
Neste agosto de 2004, lembremo-nos do sacrifício de Vargas. Que outro político brasileiro teria tido tal audácia? Um viva Vargas, a seu nacionalismo e a seu trabalhismo!

Paulo Guilherme Hostin Sämy
Conselheiro e ex-diretor da Associação Brasileira dos Analistas do Mercado de Capitais (Abamec).

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