Não é novidade que o cenário pós-pandemia no Brasil trouxe um aumento expressivo de empresas em recuperação judicial – houve um crescimento de 79% nos pedidos de recuperação judicial de empresas no primeiro semestre de 2024, comparado ao mesmo período de 2023, especialmente nos setores varejista, de construção civil e de serviços. Casos icônicos, como os das Lojas Americanas, Polishop, Dia Supermercados e da Casa do Pão de Queijo, tomaram os jornais em 2024.
Mas, acompanhado desse movimento, aparece também, como em toda crise, uma possibilidade de negócios, especialmente para investidores com maior apetite por risco: o distressed M&A, ou seja, a compra e venda de empresas em situação financeira grave, com dívidas elevadas, baixa liquidez, ou de ativos empresariais dessas entidades, por preços atrativos e com altas expectativas de lucro no médio prazo.
Fundos de investimento e investidores estratégicos estão aproveitando essas condições para adquirir empresas em crise, com o objetivo de reestruturá-las e desenvolver modelos de negócios inovadores, fazendo uso de um valuation inferior aos múltiplos comparáveis de mercado. Por seu turno, o vendedor, em uma transação dessa natureza, objetiva reestruturar ou revitalizar sua empresa em dificuldades (no caso de recuperação judicial).
O distressed M&A atua em um nicho completamente distinto das típicas operações de fusões e aquisições (M&A) e ganhou força após a reforma da Lei de Recuperações Judiciais e Falências de 2020, que trouxe um cenário de afastamento de responsabilidade do comprador pelos passivos do vendedor, especialmente quando a transação ocorre por meio da figura conhecida como UPI (unidade produtiva isolada), que pode ser um ativo da empresa, um conjunto de ativos ou a própria aquisição da sociedade.
Essa proteção ao comprador, por outro lado, não existe nas operações típicas de aquisição de empresas que não estejam em recuperação judicial, nas quais, comumente, há o risco de sucessão das obrigações e responsabilidades do vendedor pelo comprador. Já para as empresas em recuperação judicial – e seus sócios, claro – é uma excelente oportunidade de se desfazer de uma operação de alto risco financeiro e de contaminação patrimonial, podendo dedicar seus esforços a outras ou novas linhas de negócios.
A UPI é mais segura também por passar por uma aprovação em assembleia e decisão judicial, de modo que discussões como uma possível fraude ou prejuízo a terceiros pela venda de ativos da empresa, que poderiam colocar a operação em risco, são altamente mitigadas, já que os ativos são alienados com a ciência dos interessados. Além disso, é exatamente essa alienação que gera caixa para pagamento a credores. Essa proteção é fundamental para atrair investidores, pois minimiza os riscos associados à aquisição.
A alienação por UPI precisa estar prevista no plano de recuperação judicial aprovado por credores e ser homologada judicialmente, passando, depois, por uma forma de “competição” entre possíveis adquirentes. Ainda assim, o Superior Tribunal de Justiça tem um interessante precedente, no caso da recuperação judicial da Delta Construções S.A., que permitiu a venda direta da UPI sem competição, uma vez que a estrutura da operação foi minuciosamente apresentada e aprovada pelos credores no plano de recuperação judicial.
Não é à toa, por exemplo, que muitas boutiques de M&A já contam com setores especializados nessa frente para assessorar clientes interessados nos riscos – mas também nos bônus – de operações dessa natureza. O que se verifica é que a realização de operações de distressed M&A, especialmente pelo uso das UPIs nos processos de recuperação judicial, se mostra não só viável, mas segura e um caminho a ser adotado por investidores que buscam ativos ou empresas em boas condições de funcionamento, pagando um preço mais baixo e podendo trazer sua expertise e cultura de mercado para o soerguimento financeiro e – claro – bons resultados nos negócios.
Transações no âmbito de um distressed M&A também envolvem a condução de uma due diligence na empresa-alvo e em seus ativos, ainda que em menor dimensão, sendo reforçada a importância da negociação do contrato de compra e venda, que deve refletir as peculiaridades do negócio, e da submissão da transação às autoridades, se aplicável, como ao Cade, por exemplo.
Na medida em que, na transação de distressed M&A estruturada por venda de UPI, os ativos adquiridos estão livres de riscos de responsabilização sucessória inerentes ao vendedor, é comum que as declarações e garantias, negociáveis como em qualquer transação de M&A, estejam limitadas a questões de ônus, propriedade e obrigações propter rem.
Outro ponto característico desse tipo de transação é que os compradores busquem segurança por meio de estruturas alternativas às clássicas cláusulas de indenização, adotando, por exemplo, os formatos de escrow ou retenção do preço de compra (holdback) sobre os ativos remanescentes dos vendedores, ou ainda garantias de terceiros, exatamente devido à falta de crédito dos vendedores em situação recuperacional ou falimentar.
Com o cenário de mercado atual, o distressed M&A, ainda que possa parecer um desafio diante de sua especificidade, representa uma oportunidade viável e promissora para empresas que se encontram em crise e para investidores. No entanto, demanda, claro, atenção especializada tanto dos potenciais compradores quanto dos vendedores.
Juliana Raffo, especialista em direito civil, processual civil e direito empresarial.
Carla Calzini, sócia de Societário e M&A.