Baixa inflação, mas não muito

178

O início conturbado de 1999 trouxe novamente à cena um personagem que durante muitos anos foi o protagonista da economia brasileira. Depois de quatro anos de aparente calmaria, a instabilidade potencial de preços foi rapidamente revelada pela desvalorização cambial. Assim foi que a inflação, para alguns já devidamente vencida, tratou de reapresentar-se e, junto com ela, o debate sobre a reindexação de preços e salários.
Não era para menos: após registrar uma inflação acumulada em todo o ano de 98 de 0,49%, o Índice de Custo de Vida (ICV), calculado pelo Dieese para o município de São Paulo, variou 1,38% e 1,15% em janeiro e fevereiro de 99, respectivamente. Esses números, como também os obtidos por outros institutos de pesquisa, reforçavam a impressão de que o descontrole inflacionário figurava como uma das possíveis consequências da crise cambial. Esse cenário não se efetivou. Como um dos resultados da recessão experimentada no primeiro trimestre, parte dos aumentos de preços promovidos em alguns setores da economia não se espalharam para os demais. Outros aumentos simplesmente não foram sancionados pelos compradores (empresas e famílias), o que obrigou determinadas empresas a retrocederem integral ou parcialmente nas suas remarcações.
De fato, já em março as taxas de inflação começam a refluir e o ICV registra 0,11% de variação para abril e 0,22% para maio. Essa queda nos patamares inflacionários foi tão impressionante quanto a alta observada no período anterior, o que levou o Governo a comemorá-la com toda a pompa e circunstância. Ocorre que esse clima de triunfo, como de resto em várias outras situações, não tem correspondido à percepção de uma parte considerável da população. Para muitos cidadãos, dados os aumentos sistemáticos dos preços de alguns bens e serviços é incompreensível, inaceitável até, que os índices de preços registrem tão baixas taxas de variação. Deriva daí um mal-estar que na maioria das vezes gera como resposta a desconfiança. A “verdadeira” taxa de inflação seria mais alta e os resultados divulgados estariam mostrando tão somente que os índices de preços são manipulados.
Vale à pena tentar jogar um pouco de luz sobre essa possível contradição. Um índice de preços ao consumidor procura medir a variação de preços de um conjunto de bens e serviços que compõem os gastos de uma família. No entanto, as famílias têm gastos diferenciados devido às diferenças de renda, de faixa etária, entre outras. Por isso, o padrão de consumo que é referência para os índices de preços não corresponde ao de uma família específica e sim à média dos padrões das diversas famílias. É possível, então, verificarmos baixa taxa de inflação e, ao mesmo tempo, alta considerável no custo de vida de determinados grupos de pessoas.
O quadro a seguir apresenta a variação do ICV/Dieese no primeiro semestre de 1999, decomposto em itens e sub-itens de consumo, e nos permite notar a acentuada dispersão no comportamento dos preços. Enquanto a variação do índice geral foi de 4,25%, o item Equipamentos domésticos variou 7,87%. Em especial cresceram os preços dos produtos eletrônicos (12,47%), provavelmente como decorrência da desvalorização cambial. Apesar do percentual expressivo, há sempre a possibilidade de adiar o consumo deste tipo de produto e a alta de preços não necessariamente se traduz em aumento imediato dos gastos familiares.

ICV/Dieese – Variação jan-jun/99
DENOMINAÇÃO
Var. (%)

Total Geral
4.25

Alimentação
2.83

Habitação
3.61

 Equipamentos Domésticos
7.87

 Eletrônicos
12.47

Transporte
7.11

 Gasolina
19.63

 Ônibus comum
15.00

Vestuário
-1.22

Educação e Leitura
3.97

Saúde
7.63

 Seguros e Convênicos
8.63

 Medicamentos
12.25

 Diabete
14.72

 Cardio Vasculasr
15.99

Recreação
4.72

Despesas Pessoais
3.15

Despesas Diversas
1.20


O mesmo não podemos dizer dos gastos com saúde e transporte, os dois outros itens que tiveram seus preços majorados muito acima da média geral. Como se pode ver, o aumento observado no custo da gasolina, de 19,63%, tem um impacto substancial no orçamento de algumas famílias. Aquelas com renda intermediária, proprietárias de automóveis, certamente sofreram um impacto não desprezível em seus orçamentos. É também essa a situação de uma parte dos trabalhadores por conta própria e pequenos empresários, não na condição de consumidores, mas na de prestadores de serviços, pois tiveram um aumento significativo de custos de produção e vêm tendo dificuldades em repassá-los ao consumidor. Já as famílias de mais baixa renda sofrem mais diretamente o impacto do aumento das tarifas de ônibus. Alguns trabalhadores, devido à distância entre sua moradia e o local de trabalho, são obrigados a utilizar duas, até três conduções para chegar ao seu destino.
Quanto aos gastos com saúde, chama a atenção os aumentos com os sub-itens Seguros e Convênios e Medicamentos. A classe média vem sendo particularmente atingida com o aumento nos planos de saúde. Já a alta nos preços dos remédios, embora atinja a população em geral, impacta de forma algumas vezes dramática os idosos. Por exemplo, um idoso com problemas cardiovasculares teve, só nesse ano, um aumento das despesas com remédio de quase 16%. Como o valor médio das aposentadorias mal dá para alimentação e moradia, o aumento de preços de determinados remédios termina por abreviar impiedosamente a vida destas pessoas. Nesse caso, simplesmente não é possível adiar o consumo ou substituir marcas.
Pessoas com diabetes se encontram em situação semelhante, e seria possível encontrar outros exemplos dessa mesma natureza. Mas o que importa é chamar atenção para o fato de que as baixas taxas de inflação dos últimos meses não significam que para determinadas famílias e/ou grupos populacionais não tenha havido uma alta considerável em seu custo de vida. Considerando que os salários e benefícios da previdência social não têm, nem de longe, acompanhado esses movimentos de preços, para os grupos mencionados anteriormente há um processo real de empobrecimento. Por esta via, transfere-se renda de pessoas/setores mais desorganizados e com menor poder de barganha para outros, geralmente organizados sob a forma de oligopólio ou monopólio ou que produzem bens ou serviços sem substitutos e que não podem ter seu consumo adiado.
Devido à recessão em que se encontra a nossa economia, até agora os índices têm revelado que não houve “contaminação” dos diversos preços por essas altas “localizadas”, o que não significa dizer que mais adiante, na eventualidade de uma retomada do nível de atividade econômica, os formadores de preços não venham a tentar recompor suas margens de lucro provocando, com isso, nova onda de remarcações. Entretanto, a afirmação anterior não leva à conclusão de que esse processo é limpo, neutro. Parte da população está, de fato, ficando mais pobre. E aí retornamos ao início desse artigo: o mal-estar das pessoas frente aos índices de preços tem base bastante concreta para estar ocorrendo e, como em outras ocasiões, o termômetro da população continua em perfeito estado.

Paulo Jager
Economista do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos)

Espaço Publicitáriocnseg

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui