Brasil: a caminho de um novo bloco histórico

92

Estamos diante de um segundo turno presidencial, que exige uma análise cuidadosa. Os dados são muito expressivos: a votação de Lula somou em torno de 46%. Se somarmos os votos dos demais candidatos de oposição chegamos a 77% dos votos para presidente.
Esta cifra é absolutamente igual aos resultados apresentados por pesquisas de opinião, segundo as quais esta mesma porcentagem de entrevistados não votariam jamais no governo atual. Os 23% de votos obtidos por Serra coincidem também com a proporção de cidadãos que apoiam o governo Fernando Henrique Cardoso.
Estes dados indicam claramente as dificuldades que tem o candidato do governo para crescer no segundo turno. Seu principal recurso publicitário é o de tentar separar-se do governo. Mas Serra tentou usar esta tática no primeiro turno sem muito êxito.
Somente lhe resta utilizar o recurso do ataque pessoal ao adversário, que foi muito útil para derrubar as candidaturas de Roseana Sarney e Ciro Gomes no primeiro turno. Se optar por esta tática poderá encontrar um rechaço muito forte dos eleitores. Uma vez mais as pesquisas de opinião indicam uma desaprovação muito grande da população a este tipo de manobras.
Do outro lado, Luis Inácio Lula da Silva encontra-se com necessidade de ganhar os votos correspondentes ao eleitorado que apoiou os demais candidatos de oposição. Para que isto aconteça deverá reconstituir a frente de esquerdas que funcionou para as eleições de 1998 e que se manteve por um ano, mais ou menos, depois das eleições.
Volta à baila, consequentemente, o tema da frente de esquerdas ou de centro-esquerda, sua possível composição, seus métodos de atuação, seu programa e seu alcance. Sobre a sua composição se impõe uma definição de imediato: desde 1998 até agora afastaram-se da frente os principais partidos de esquerda aliados ao PT.
Trata-se do Partido Socialista Brasileiro que lançou a candidatura presidencial de Anthony Garotinho, ex-governador do Estado do Rio de Janeiro, e do Partido Democrático Trabalhista, que articulou uma Frente Trabalhista que serviu de apoio à candidatura de Ciro Gomes, lançada originalmente por outro membro da frente de 1998, o Partido Popular Social (ex-Partido Comunista Brasileiro).
Ao mesmo tempo, de 1998 ao presente ampliou-se a participação na frente que apoia a Lula, incluindo o Partido Liberal, que indicou o vice-presidente de Lula, o empresário José de Alencar. Os três partidos excluídos na confrontação do primeiro turno (PSB, PDT, PPS) voltariam a compor uma nova frente, ampliada com a inclusão do PL? Esta é uma questão a ser resolvida não muito facilmente.
Em seguida se colocará outra questão ainda mais complicada quando se discutir o caráter da nova frente. Se se trata de estende-la ao plano parlamentar para assegurar uma base ao novo governo, haveria que incorporar outras forças políticas para garantir a maioria no parlamento.
Neste plano se estabelece a opção entre a participação de membros individuais ou uma negociação mais ou menos ampla com partidos como o PMDB (que apoia oficialmente a Serra mas que tem amplas dissidências que apoiam a Lula). Ou com o PTB (que apoiou oficialmente a Ciro Gomes mas que dificilmente apoiaria a Lula no segundo turno).
Até que ponto estes partidos comporiam a frente de centro-esquerda ou somente aceitariam fazer acordos parlamentares em torno de projetos específicos? Neste caso grande parte das conversações se postergariam para o período pós eleitoral. Estas indefinições poderiam debilitar a candidatura Lula no segundo turno. Podem estabelecer dúvidas sobre a viabilidade de sua proposta de governo, tema a ser explorado por José Serra.
Mas o fato mais importante das eleições é, sem sombras de dúvida, o fortalecimento do Partido dos Trabalhadores como opção política e ideológica e como um amplo e disciplinado aparato institucional que se estende a todo o país. Temos que assinalar que um país com as dimensões continentais do Brasil tem muita dificuldade de criar instituições de dimensão nacional.
As Forças Armadas e a Igreja eram, talvez, as únicas instituições verdadeiramente nacionais com que contava o país até 1940. A criação de um sindicalismo estatal, de âmbito nacional, durante o governo Vargas, criou as condições de uma estrutura nacional popular e de esquerda depois de muitas idas e vindas da nossa vida constitucional, comprometida pelo golpe de Estado de 1964. O PT contou ainda com o apoio das organizações de base da Igreja em sua formação e conseguiu um respaldo em todo o país que poucos poderiam esperar.
É necessário assinalar que, diante da desnacionalização da economia e do compromisso tão acentuado com as políticas norte-americanas realizados pelo governo atual, as Forças Armadas brasileiras têm se aproximado significativamente do PT e de outras forças da oposição em nome da segurança nacional. A frente política que se arma no país ganha assim a dimensão de um bloco histórico com um vasto projeto nacional.
Este caráter mais profundo se faz ainda mais claro quando se observa uma adesão crescente do empresariado ao programa da esquerda brasileira. O fato do vice-presidente da chapa de Lula ser um importante empresário, ex-presidente da Federação das Indústrias de Minas Gerais, é talvez uma demonstração bastante evidente da amplitude e profundidade do bloco de forças que deverá unir-se nesta eleição.
É um fato evidente que um amplo contingente dos empresários do setor produtivo se aliem às candidaturas de esquerda e à de Lula em especial. Eles se uniram devido à confrontação crescente com as vantagens obtidas pelo setor financeiro, que advêm, entre outras razões, das altíssimas taxas de juros (as mais altas do mundo) que lhes paga o Estado em detrimento dos interesses da produção e dos serviços.
Eles estão se unindo também devido ao reconhecimento da necessidade de um planejamento estratégico do país que permita retomar o crescimento econômico e desenvolver o mercado interno. Trata-se particularmente de proteger-se contra um abertura indiscriminada da economia que tem favorecido somente o capital internacional. Esta preocupação se forma ainda mais com relação à adesão do Brasil à Alca, que parece implicar na quebra generalizada da indústria brasileira.
Por último, este novo bloco histórico se apoia na necessidade de unir os mercados do subcontinente sul-americano, e talvez latino-americano, ao mesmo tempo que abriga expectativas positivas de uma maior aproximação com a África e de uma relação mais ativa com a China, Índia e Rússia no cenário internacional no sentido de um intercâmbio comercial e tecnológico mais forte.
Este projeto nacional se opõe drasticamente ao projeto neoliberal que domina a cabeça dos intelectuais que representam as forças no poder. Não há dúvida que setores do PSDB se sentem atraídos por um programa com estas características. Mas eles temem sobretudo um possível choque com os Estados Unidos e com o sistema financeiro internacional. Contudo, não há dúvida que a demonstração da possibilidade de uma política de crescimento sem inflação, da distribuição de renda sem fortes crises sociais, de uma política de soberania nacional sem choques internacionais muito graves os faria mudar rapidamente de lado.
Esta foi a opção da grande maioria do povo brasileiro conforme sua manifestação nas eleições de 6 de outubro. Mais de 100 milhões de brasileiros foram às urnas para enviar um recado muito claro à elite política brasileira. E escolheram um operário de origem extremamente popular para dirigir esta nova etapa da história do Brasil, que terá fortes repercussões em todo o mundo. Será muito difícil mudar esta disposição.

Theotonio dos Santos
Professor titular da Universidade Federal Fluminense e Coordenador da Cátedra e Rede Unesco – Universidade das Nações Unidas sobre Economia Global e Desenvolvimento Sustentável.

Espaço Publicitáriocnseg

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui