A Venezuela é ricamente aquinhoada com recursos naturais e condições climáticas favoráveis para a agricultura, porém 80 % dos venezuelanos são pobres. Esse paradoxo despertou o inconformismo de líderes esclarecidos, levando-os a criar, há uns 10 anos, uma bem concatenada – e por isso mesmo fortíssima – Frente Patriótica, que conseguiu revolucionar o país pelo voto, derrotando um sistema pseudo-constitucional que, até então, só tinha protegido a corrupção dos governantes e alienado a soberania do país, deixando-o à mercê de elites de intermediários que, em troca de “honorários”, entregavam a grupos estrangeiros as riquezas naturais, mantendo na miséria a maioria do povo.
O Brasil, país dos mais ricos do mundo em recursos naturais, tem todas as razões para seguir caminho simétrico. Temos enormes extensões de terras férteis e clima favorável para a agricultura; possuímos gigantescas reservas de minérios de grande valor estratégico e econômico e dispomos de uma inigualável vantagem relativa, sobre outros países de economia comparável à nossa, representada pelas fontes renováveis de energia, particularmente o potencial hidroelétrico. Infelizmente, temos também governantes corruptos, acolitados por elites de intermediários.
Assim, não é surpreendente que o Pnud, com seus indicadores de distribuição de renda e índices de desenvolvimento humano, demonstre que, mesmo figurando entre as dez maiores economias do mundo, o Brasil abriga a maior concentração de pobres e miseráveis do Hemisfério Ocidental. É que nossos governantes, em vez de administrar honestamente as riquezas do país em benefício da população, preferem fazer a corretagem de sua venda a aproveitadores locais e a grupos estrangeiros.
Em nosso entender, para dar ao povo condições de aproveitar de maneira mais justa e equilibrada as riquezas naturais do país, deve-se começar pela definição de uma estratégia coerente para a estrutura física da economia, deixando de lado as atuais políticas financeiras, monetárias e fiscais, cujos efeitos, no campo social, têm-se revelado devastadores. E a prioridade absoluta deve ser atribuída à educação, começando pelo ensino primário, médio e profissionalizante e indo até as mais avançadas atividades de pesquisa científica e tecnológica, em instituições de ensino superior.
Mas os atuais mandatários não pensam assim. Sua prioridade parece ser o enriquecimento escandaloso de intermediários e banqueiros, pouco lhes incomodando a miséria do povo. A privatização do sistema elétrico ilustra nossa afirmação. Os argumentos do governo, a favor da privatização, são de que o Estado não tem recursos para expandir o sistema, e de que a receita da privatização serviria para abater o déficit público e liberar recursos para programas sociais, como educação, saúde pública e segurança. Ocorre que a privatização não expande coisa alguma, pois resume-se em entregar a grupos privados (em geral estrangeiros) aquilo que já existe e funciona muito bem. E os fatos mostram que o Brasil tem perdido muito com as privatizações. Nos últimos cinco anos, a dívida interna saltou de R$ 60 bilhões para R$ 480 bilhões, o endividamento externo passou de US$ 120 bilhões a 250 bilhões, a saúde pública, o ensino básico e a pesquisa científica carecem de recursos, os índices de desemprego são desumanos, o valor aquisitivo dos salários amesquinha-se e a violência é assustadora. Entretanto as remessas de lucros, que eram de US$ 700 milhões, passaram a sangrar o país em US$ 7 bilhões, por ano.
Se apenas uma fração da quantia que o governo dissipou no Proer fosse destinada a um programa de saneamento de estatais do setor elétrico, arruinadas por administradores corruptos e incompetentes (dentre os quais estão vários néo-privatistas), aquelas recuperariam sua capacidade de expandir o sistema e tudo estaria resolvido.
É inaceitável que as autoridades do Ministério de Energia e do BNDES contrariem a opinião unânime de especialistas dos mais respeitados, retalhando o sistema elétrico, para entregá-lo à exploração estrangeira, desprezando o fato de que eletricidade é um fator vital para tudo e que portanto, como todos pagam tarifas, se privatizarem o sistema, cometem a grave injustiça de concentrar, nas mãos de grupos privilegiados, parte da renda de toda a economia, arrecadada por meio do sistema elétrico, que foi construído com dinheiro do povo e, para gerar eletricidade, utiliza a água que corre nos rios brasileiros.
Enfim, tudo indica que a perene crise em que vivemos, tristemente refletida na miséria do povo, é eminentemente política. Os três poderes da República já não são dignos do respeito da sociedade, porém, inexplicavelmente, os homens públicos honrados que percebem a situação – e são muitos – não conseguem se articular, para concatenar um movimento semelhante ao venezuelano. Seria por falta de lideranças capazes de motivar o povo, para aglutiná-lo em torno de um projeto coerente ?
Um traço comum nos políticos que, de algum modo, poderiam contrapor-se ao descalabro implantado pelo Sr. Fernando Henrique Cardoso, é um certo temor de apresentar idéias que possam contrariar interesses de banqueiros e grupos econômicos poderosos. A impressão que se tem é a de que, se chegassem o poder, não teriam vontade política nem idéias para agir diversamente do atual governo, mesmo sabendo que este atraiçoou o povo e está levando o Brasil ao naufrágio.
Aqui, a bem da verdade e da justiça, temos que abrir uma exceção para o governador do Rio Grande do Sul, Sr. Olívio Dutra, que teve, por um lado, a dignidade de se opor a um projeto ruinoso para seu estado e, por outro, o descortino para perceber que investimentos na agricultura, na agroindústria e nas pequenas e médias empresas são muito mais eficientes para gerar e distribuir riquezas do que uma multinacional que, reaproveitando máquinas já depreciadas na matriz, obteria incentivos e financiamentos provenientes de recursos públicos, para montar automóveis que já são produzidos em outras regiões. De resto, no tocante a transportes, governantes esclarecidos deveriam pensar em transportes coletivos e em malhas rodoviárias e ferroviárias, urbanas e interurbanas. Não em negócios com multinacionais, que preferem a redução do Estado e a livre iniciativa.
José Leite Lopes
Pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, foi, por 15 anos, professor titular de Física Atômica da Universidade Louis Pasteur, de Estrasburgo (França), da qual é hoje professor emérito.
Joaquim Francisco de Carvalho
Consultor no campo da energia e membro do Conselho Consultivo do Ilumina. Foi coordenador do Setor Industrial do Ministério do Planejamento, engenheiro da Cesp e diretor da Nuclen (atual Eletronuclear).