Caos trumpista joga Europa no colo de seus fantasmas históricos

Diante das políticas de Trump, europeus caminharão para o antigo hábito fratricida de competição. Por Fabio Reis Vianna

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Ursula von der Leyen com Volodymyr Zelensky , em um salão com baneiras da Otan na Ucrânia
Ursula von der Leyen visita Volodymyr Zelensky na Ucrânia (foto de Christophe Licoppe, UE)

“Estou indo a Paris com uma mensagem muito clara para nossos amigos europeus: precisamos mostrar que levamos nossa defesa a sério e que estamos prontos para assumir nossa parte do ônus. Falamos sobre isso por tempo demais – e o presidente Trump está certo ao exigir que tomemos providências”, pronunciou-se em tom resignado o primeiro-ministro britânico Keir Starmer, no dia 16 de fevereiro.

A guerra na Ucrânia acabou, ou melhor, a Ucrânia acabou – daqui para frente seu território será permanentemente uma zona de fricção entre as forças militares europeias e a Rússia. Um país retalhado em áreas de influência e futura cabeça de ponte de um eventual avanço da guerra em direção ao leste europeu.

O discurso do vice-presidente dos EUA proferido na Conferência de Munique dá a pista do significado desta nova e confusa realidade, quando reafirma a intenção estratégica de destruir a ordem internacional instituída no pós-guerra, algo que também interessa à Rússia e terá como efeito colateral a quebra da estabilidade europeia. Ao reforçar o apoio aos movimentos de extrema-direita da UE, J D Vance, para além de esperar aliados submissos, busca implodir a arquitetura de paz do Velho Continente por dentro.

Como resposta a isso, a Europa prontamente sugere aprofundar o apoio militar à Ucrânia, a despeito do recuo americano. Na verdade, trata-se de uma estratégia de sobrevivência dentro de uma lógica secular eminentemente europeia, e que somente pode ser concebida conhecendo a lógica do jogo das guerras e do expansionismo sistêmico interestatal.

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Eis o paradoxo do velho jogo das guerras se confirmando: o acordo unilateral imposto por Trump levará a Europa a uma escalada armamentista, o que tornará o território ucraniano inexoravelmente em um permanente campo de teste das novas tecnologias bélicas que serão desenvolvidas por potências como França, Alemanha e Reino Unido.

Portanto, a guerra na Ucrânia não se encerra neste acordo, na medida em que a Europa será instada a se remilitarizar, tendo França, Reino Unido e Alemanha como cabeças de ponte deste processo. Na tradição de longa duração do jogo das guerras inventado pelos próprios europeus a partir do século 13, a “paz perpétua” no Velho Continente se mantém até que algum dos competidores resolva interromper a “trégua” atacando e incorporando o território de outrem, mantendo assim a eterna espiral de um sistema interestatal que continuará existindo em sua dinâmica expansionista, competitiva, hierárquica e bélica.

A guerra em território ucraniano é uma guerra de características globais e hegemônicas – ela não encerra em si mesma. Só é possível compreender e analisar o cenário, portanto, à luz de uma perspectiva estrutural de longa duração, onde a Europa sempre foi o primeiro e mais sangrento estágio das guerras mundiais.

Nesta perspectiva, seria inócua qualquer discussão sobre quem tem razão nesta contenda – ninguém em sã consciência questionaria que o avanço da Otan em direção às bordas da Rússia motivou a invasão; o que analistas comprometidos com a realidade dos fatos deveriam procurar investigar são as camadas mais profundas e estruturais do que esta guerra representa enquanto ruptura da dinâmica interestatal que o mundo vivenciou desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Qualquer acordo que se fizesse a respeito da Ucrânia manteria latente o ambiente de guerra na Europa, pois abriu-se a caixa de pandora da remilitarização de um continente que há décadas vivia sob a égide da “paz perpétua”. Se levarmos em consideração a história, não há como voltar atrás.

Neste momento, a nova estratégia de segurança dos Estados Unidos busca reordenar suas prioridades em direção à contenção da China, deixando a Europa sozinha para enfrentar seus próprios fantasmas históricos – a extrema-direita e a guerra. Fantasmas estes que estão mais vivos do que nunca.

Ao atacar abertamente o presidente ucraniano Zelensky, Trump joga às favas todos os escrúpulos de consciência ao endossar o ímpeto russo de subverter todas as regras que tutelavam a ordem internacional instituída no pós-Segunda Guerra. Endosso que interessa a setores do establishment estadunidense, que veem na instauração do caos sistêmico global a única saída para que o poder americano se reabilite através do unilateralismo.

Trata-se, portanto, de uma aliança de conveniência com a Rússia, na medida em que instiga a divisão no seio da entente sino-russa, bem como de todo o chamado Sul Global. Isto é perceptível também na própria presença do PM indiano Modi em Washington [semana retrasada]. Rússia e Índia cumprem assim um papel quase involuntário nos planos estratégicos de longo prazo de Washington em enfraquecer a liderança global chinesa.

No caso específico da Rússia, esta ainda cumpre o papel de agente desestabilizador do próprio projeto europeu, que agora se vê imerso na lógica entrópica do velho jogo das guerras secular, que nesta nova dinâmica estratégica de expansão do poder americano, interessa a Washington. Jogar a Europa contra a Rússia, mesmo que sem dizer abertamente que o objetivo é este, no longo prazo enfraquece a Europa, mas também a própria Rússia – eis a fórmula mágica para deixar a China sozinha e cercada pelo assédio americano no Indo-Pacífico e Mar do Sul da China.

Enquanto isso, navios de guerra chineses navegam a menos de 150 milhas náuticas de Sydney, na Austrália, em manobra “sem precedentes” que, segundo matéria do Financial Times, “ocorre enquanto Pequim projeta poder cada vez mais longe no Pacífico” – os chineses já sabem que são o verdadeiro e único alvo de Washington neste momento.

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Sob o signo do trumpismo, a nova estratégia de projeção do poder americano se parece um tanto similar ao que Kissinger propôs nos anos 70 para se aproximar da China e isolar a União Soviética, afastando assim os dois gigantes comunistas um do outro.

Mesmo que de fato existam similaridades, a nova estratégia dos Estados Unidos é carregada de nuances que diferenciam uma da outra, na medida em que a estratégia atual é absolutamente unilateral e dispensa a manutenção do arcabouço de segurança da Europa instituído pela Otan.

Neste momento distópico e sem precedentes, o realismo político engole a Europa, trazendo consigo a velha máxima de que no final das contas quem dá as cartas no Velho Continente são os Estados-nacionais expansionistas, com suas fronteiras e suas próprias Forças Armadas – não por acaso, a França aproveita o vácuo de poder para se recolocar no jogo interestatal como líder de um processo de reafirmação do poder militar europeu.

Falta, no entanto, combinar com ingleses e alemães, que também se movimentam no tabuleiro para ocupar este mesmo espaço de liderança.

Se nada correr bem, como tudo leva a crer, e a estratégia de expansão caótica de Trump der certo, em algum momento os europeus caminharão para o antigo hábito fratricida de competição e desconfiança recíproca que ao longo da história direcionou o Velho Continente para a própria destruição.

Fabio Reis Vianna é mestre em Relações Internacionais e Estudos Europeus pela Universidade de Évora em Portugal, analista político internacional e professor.

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