Capitalismo, IA e desigualdade: perspectivas marxistas na atualidade

O avanço técnico e a automação impactam o trabalhador no capitalismo, criando precarização e insegurança Por Alonso Barros

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inteligência artificial, IA
Inteligência Artificial (Ilustração)

“Enquanto o trabalho for mercadoria, o homem nunca será livre de fato.”

Nunca a humanidade produziu tanta riqueza e, paradoxalmente, nunca viveu em tamanha desigualdade. O avanço técnico, a automação e a inteligência artificial prometem libertar o homem do trabalho repetitivo, mas o prendem a novas formas de precarização e insegurança. A contradição fundamental identificada por Karl Marx no século 19 permanece viva: a produção da riqueza é cada vez mais social, coletiva e global, mas sua apropriação continua sendo privada e concentrada.

O capitalismo, em sua essência, é um sistema de desequilíbrio. Ele se sustenta não na harmonia, mas na exploração; não na cooperação, mas na concorrência. O trabalhador, que é a base de toda criação de valor, raramente usufrui da riqueza que produz. O capital, ao contrário, cresce justamente pela apropriação do trabalho não pago — a mais-valia —, transformando a força humana em mercadoria e o próprio ser humano em meio de valorização.

Pensar uma economia mais harmônica, portanto, exige mais do que reformas pontuais. É necessário repensar a própria forma como a sociedade organiza sua produção e distribuição da riqueza. Marx não propõe um modelo administrativo de substituição do capitalismo, mas uma transformação radical nas relações sociais de produção. Sua crítica não é apenas econômica, é também moral e filosófica: enquanto as relações entre pessoas forem mediadas por coisas — mercadorias, dinheiro, capital —, a humanidade seguirá alienada de si mesma.

Uma economia harmônica, à luz de Marx, seria aquela em que o trabalho deixasse de ser mercadoria e passasse a ser atividade emancipadora. O trabalho, nessa perspectiva, é a expressão da criatividade humana e não o simples meio de sobrevivência. O que caracteriza a alienação no capitalismo é o fato de o trabalhador não se reconhecer no produto de seu próprio esforço. Ele trabalha, mas o fruto do trabalho não lhe pertence. Em uma economia humanizada, o trabalhador voltaria a ser sujeito do processo produtivo e não mero instrumento do lucro.

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Outro pilar fundamental dessa nova economia seria a propriedade social dos meios de produção. Marx jamais defendeu um Estado controlador e burocrático, mas sim a socialização das condições materiais da produção — fábricas, terras, máquinas e tecnologias — sob a gestão coletiva de quem nelas trabalha. Isso não significa eliminar a diversidade de atividades econômicas, mas submeter a lógica da produção às necessidades humanas, e não ao lucro privado.

A planificação democrática da economia seria o terceiro eixo dessa transformação. Em vez de deixar o destino das nações nas mãos de “forças de mercado” cegas e voláteis, Marx propõe o uso consciente da razão coletiva: uma forma de organização social em que ciência, tecnologia e participação popular orientem a produção de acordo com critérios de utilidade, sustentabilidade e justiça. A economia, nesse modelo, voltaria a ser um meio para a vida, não um fim em si mesma.

Essas idéias ganham nova relevância no século 21. A automação e a inteligência artificial, que poderiam libertar a humanidade do trabalho exaustivo, hoje ampliam o desemprego e a concentração de renda. A proposta marxiana sugere outra direção: transformar a automação em emancipação. A tecnologia deve reduzir a jornada de trabalho, distribuir os ganhos de produtividade e devolver ao indivíduo o tempo livre necessário para o desenvolvimento humano, cultural e intelectual.

Da mesma forma, a democratização das decisões econômicas aparece como um passo concreto rumo a uma economia harmônica. Experiências como cooperativas, moedas sociais, bancos comunitários e orçamentos participativos mostram que é possível produzir e distribuir riqueza de forma solidária e racional. São ensaios de um novo modo de produzir em que o valor nasce da cooperação, não da exploração.

Outro aspecto essencial é a dimensão ecológica. Marx já havia alertado para a ruptura do “metabolismo” entre o homem e a natureza, provocada pela busca incessante do lucro. Uma economia harmônica deve restabelecer esse equilíbrio, tratando o ambiente não como um recurso a ser explorado, mas como condição de continuidade da vida. A sustentabilidade, nesse sentido, não é uma pauta moderna alheia a Marx, mas uma conseqüência lógica de seu pensamento sobre o caráter social e natural do trabalho.

Em última instância, a economia harmônica é a superação da alienação. Não se trata de uma utopia idealista, mas de um horizonte histórico possível. O próprio desenvolvimento do capitalismo cria as condições materiais para sua superação: ao socializar o trabalho e expandir o conhecimento técnico, o sistema engendra as forças produtivas que podem libertar o homem da necessidade. A tarefa é reconduzir essas forças para o bem comum.

A harmonia econômica, portanto, não significa ausência de conflito, mas a superação da exploração como princípio organizador da sociedade. Significa devolver ao trabalho seu caráter humano e criativo; transformar o valor de troca em valor de uso; recolocar o homem, e não o capital, no centro da vida econômica.

Quando o trabalhador puder se reconhecer no mundo que produz; quando as relações entre pessoas deixarem de ser mediadas por coisas; quando o tempo livre e o desenvolvimento humano forem mais valiosos que o lucro — então, enfim, estaremos diante de uma economia verdadeiramente harmônica.

Não será a harmonia da resignação, mas a da justiça. Não será a paz do conformismo, mas a da emancipação. Como Marx “grita” em seu Manifesto: “Trabalhadores de todos os países, uni-vos!”


Alonso Barros, economista, Mestre e Doutor em Economia

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