Então é Carnaval… (I)

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O Carnaval, instante-palco para expressão livre de ideias, de semi-ideias e até de não-ideias, serve tanto ao propósito do abafa, como do desabafo. No Rio de Janeiro, as escolas de samba são fiéis depositárias das sensações imantadas nas comunidades e que identificam o grau de paciência destas. Já houve carnavais, nos anos de chumbo (bate na madeira, rápido), em que a determinação autoritária era para falar bem. E escolas trouxeram enredos como usina nuclear, rodovia Transamazônica e outros símbolos de então do regime militar. Ou, alternativamente, enredos impenetráveis na abstração de reis egípcios, voando, no pelo, em pégasos brancos…

 

Lembra-se de alguém?

Sem abrir mão de pensar, de se emocionar, de viver plenamente, as escolas de samba em geral (há exceções, claro) ganharam em qualidade, gestão, consciência e, sobretudo, em responsabilidade para a afirmação da importância que têm como instituições. E não foram só elas. Já não se ouvem com a mesma frequência de antes (mas ainda são ouvidos) dizeres, de cunho escravista, sobre a inconsequência de sonhar o ano inteiro, gastar e caprichar na fantasia “prá tudo se acabar na quarta-feira”.

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No mesmo acorde do “Taro Aso brasileiro” que insultou milhões de trabalhadoras brasileiras ao reclamar que “até empregada doméstica estava viajando prá Disney”…

Taro Aso (20 de setembro de 1940), ex-ministro das Finanças e ex-primeiro-ministro do Japão, ofendeu “de uma veizada só” mais de 60 milhões de japoneses quando, em ato público, declarou que a “solução para o problema do alto gasto público com despesas médicas para idosos só se resolve se os deixarmos morrer logo”.

Ao longo dos 20 anos mais recentes passados, já nos referimos na coluna Empresa-Cidadã à importância das escolas de samba. Como foi em fevereiro de 2003, “Quem plantar a paz vai colher amor…” (Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira). Na ocasião, destacamos que escolas de samba são exemplos da alta capacidade de mobilização, de organização e de sonhar do povo brasileiro. Cada uma delas reúne milhares de pessoas em uma noite, pessoas que nunca tinham se reunido assim antes e que, apesar disso, fazem uma ópera perfeita.

Todas elas atendem os seus públicos interessados como raras empresas são capazes de realizar. Os focos objetivos da conformidade, como desempenho, confiabilidade, durabilidade e serviço continuado, e os focos subjetivos da credibilidade, como reputação, ética, estética e expectativa são observados, como ainda não foi descrito nos manuais de qualidade.

 

Mangueirice’, diálogo intergeracional

A Estação Primeira de Mangueira, fundada em 28 de abril de 1928, de Saturnino Gonçalves, o primeiro presidente, ao atual, passando pelo saudoso amigo Edi Miranda Rosa, cultua os seus valores e símbolos, no que a pesquisadora Maria Alice Nunes Costa (UFF), chamou de “mangueirice”.

Um bom exemplo de “mangueirice” é o da Escola de Samba Mangueira do Amanhã, fundada em 1987 pela maranhense Alcione, a Marrom, e que reúne jovens entre 5 e 15 anos, com a finalidade expressa de construir um mundo melhor, através do permanente contato com as raízes e tradições do samba. Com todos os motivos, figurou em destaque no desfile deste 2020. Ao lado do presidente de Honra, Nelson Sargento Mattos (25 de julho de 1924; 95 anos).

Esta argamassa gerou projetos que são emblemas do que a mobilização e parcerias ainda poderão realizar em nosso país, como o Programa Social da Mangueira, que teve origem no Projeto Olímpico. Reúne em parcerias a Xerox (desde 1987), a Universidade Castelo Branco (desde 1997) e a Petrobras. Disponibiliza professores e alunos-bolsistas de educação física.

O Programa Social da Mangueira foi configurado como um complexo de serviços oferecidos à comunidade, e serviu de padrão para outras comunidades, compreendendo o Ciep Nação Mangueirense (1994, governo Leonel Brizola), com 30 turmas da 5ª à 8ª séries, e a Escola Tia Neuma (2001), nome da lendária cidadã mangueirense, filha do fundador e primeiro presidente da Escola de Samba, atendendo 440 crianças, do CA à 4ª série, em parceria com o Grupo Santa Mônica Centro Educacional.

Outros parceiros são a Universidade Veiga de Almeida, o CAMP Mangueira, o Comitê para a Democratização da Informática (CDI), a Secretaria Municipal de Educação, a Universidade Castelo Branco, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, o Instituto Educacional Pró Cidadania, a empresa Sisper, a Associação Brasileira da Indústria de Vidro (ABIVidro), a Bolsa Mercantil e de Futuros (BM&F), o Senai, a Cimento Votoram, a Akros Fortilit, a Leslac Tintas, o Projeto Dançando para não Dançar, a BR Distribuidora, o BNDES, a Faperj e a Vídeo Filmes.

Assim, em 2020, o samba da Estação Primeira de Mangueira pode cantar “Meu nome é Jesus da gente/Nasci de peito aberto, de punho cerrado/Meu pai carpinteiro desempregado/Minha mãe é Maria das Dores Brasil/Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira/Me encontro no amor que não encontra fronteira/Procura por mim nas fileiras contra a opressão/E no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão.”

E continua “Eu to que to dependurado/Em cordéis e corcovados/Mas será que todo povo entendeu o meu recado?/Porque de novo cravejaram o meu corpo/Os profetas da intolerância/Sem saber que a esperança/Brilha mais que a escuridão/Favela, pega a visão.”

Por fim, “Não tem futuro sem partilha/Nem messias de arma na mão/Favela, pega a visão/Eu faço fé na minha gente/Que é semente do seu chão/Do céu deu pra ouvir/O desabafo sincopado da cidade/Quarei tambor, da cruz fiz esplendor/E ressurgi pro cordão da liberdade/Mangueira/Samba, teu samba é uma reza/Pela força que ele tem/Mangueira/Vão te inventar mil pecados/Mas eu estou do seu lado/E do lado do samba também.”

E você? De que lado está?

 

Paulo Márcio de Mello é professor, servidor público e aposentado, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

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