Há algumas semanas, fiz uma visita técnica à Biblioteca Pública do Paraná, em sua bela e imponente sede atual, inaugurada em 1954. Aprendi que tal sede foi construída para que a Biblioteca seja um centro cultural – o que, de fato, é, com grande competência. Mas, para o que nos interessa aqui, também descobri que o seu quadro técnico permanente, desde os anos 1980–1990, foi reduzido para cerca de 20% atualmente. Esse dado estarrecedor levou-me às reflexões abaixo.
Nos anos 1990, o então ministro da Administração e Reforma do Estado, Luís Carlos Bresser-Pereira, em seu projeto de reforma do Estado, propôs a noção de “carreiras típicas de Estado”. Em dezenas de publicações, ele jamais indicou quais seriam, de fato, essas carreiras; entre percalços, sua proposta de reforma foi implementada pela metade, mas, no final das contas, a expressão “carreiras típicas de Estado” deitou raízes na administração pública, expandindo-se do nível federal para, principalmente, os níveis estadual e municipal.
Abstratamente, a concepção de “carreiras típicas de Estado” até faz sentido: são carreiras de serviços que só se podem realizar pelo Estado; assim, essas carreiras precisam ter servidores públicos com estabilidade (ou seja, enquadrarem-se no Regime Jurídico Único, o RJU, como “estatutários”).
O conceito subjacente a isso é que as carreiras “não típicas” não precisam ter estabilidade, podendo ser celetistas (enquadrados na Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT); na verdade, as carreiras não típicas não precisam nem se constituir em “carreiras”.
A diferença de enquadramento jurídico é profunda: a estabilidade dos estatutários é obtida após três anos de serviço efetivo, durante os quais são continuamente avaliados (e, diga-se de passagem, também são avaliados das mais diferentes maneiras após esse prazo); essa estabilidade também os torna impermeáveis às pressões políticas e, dessa forma, eles podem desenvolver, de fato, carreiras profissionais elaboradas considerando o longo prazo, paralelamente a projetos públicos de longo prazo. Não há dúvida de que a estabilidade também beneficia o aumento dos salários.
Em contraposição, os servidores celetistas podem ser demitidos a qualquer momento (ad nutum). Isso impede todos os benefícios trazidos pela estabilidade: os servidores não têm perspectivas efetivas de longo prazo, não consideram a possibilidade de carreiras e, portanto, não incorporam em suas práticas profissionais a realização de projetos públicos de longo prazo. E, ao contrário do que o senso comum privatista argumenta, a demissão ad nutum é usada como arma contra os trabalhadores, a fim de manter os salários mais baixos.
Além disso, embora Bresser tenha sido ambíguo a respeito, falando em reforma “republicana”, os defensores da substituição dos estatutários pelos celetistas não por acaso falam em seguir os parâmetros da “iniciativa privada”. Ao fazerem-no, repetem o mito da eficiência privada – esquecendo-se das sucessivas mancadas da Enel em São Paulo, da Light no Rio de Janeiro, da Vale em Minas Gerais e da Oi no país inteiro, além de dezenas de outros exemplos cotidianos –, buscam sujeitar os servidores às conveniências políticas de plantão, desmobilizar os trabalhadores, baixar os salários e impedir projetos públicos de longo prazo.
Esses raciocínios são repetidos por políticos de direita (não por acaso, é o programa do novo partido do Centrão, o União Progressista) e mesmo por institutos de pesquisa que se dizem “republicanos”: ambos compartilham o fato de não saberem o que é o republicanismo nem o que é o bem comum.
Dito isso, voltemos a Bresser-Pereira e à sua proposta. Como Bresser jamais definiu quais seriam as carreiras típicas de Estado, todo governo decide qual é a carreira típica. Há algumas funções, especialmente no nível federal, que, por definição, só podem ser executadas pelo Estado: militares, polícias federais, Casa da Moeda, Tesouro Nacional, Receita Federal, diplomatas. Não são muitas carreiras e, no fim das contas, não é muita gente. (Entretanto, eles, sim, fazem questão de ter salários e privilégios nababescos.)
O problema é que o grosso do serviço público prestado pelo Estado para a sociedade – isto é, pelo Poder Executivo civil, que é, de fato, o governo e que se sujeita a controles públicos efetivos, ao contrário do Poder Judiciário, do Ministério Público, do Poder Legislativo e dos militares – não se enquadra nas “carreiras típicas de Estado”. São médicos, enfermeiros, assistentes sociais, sociólogos, museólogos, bibliotecários, economistas, pesquisadores, agrônomos, arquitetos, engenheiros, físicos, químicos, historiadores e até professores, além de dezenas de outras profissões de nível superior, e uma gama gigantesca de servidores enquadrados em denominações mais genéricas e em cargos de nível médio e fundamental.
É essa quantidade enorme de servidores que presta, de verdade, os serviços para a população. Todos esses servidores, que respondem pela grande maioria dos serviços públicos, entram na categoria de “carreiras não típicas de Estado”; ou seja, cada vez mais, eles podem ser passíveis de demissão com facilidade. Ou melhor, cada vez mais, eles podem ser – e são – substituídos por celetistas e, ainda mais (e pior), por estagiários.
A substituição dos servidores permanentes, estatutários, por servidores não permanentes, celetistas, ocorre com mais facilidade nos níveis estadual e municipal do que no federal: é o que se vê no dramático exemplo da Biblioteca Pública do Paraná. Mas a substituição dos estatutários por celetistas e estagiários não se dá pelos procedimentos ultraliberais, por decreto, como proposto durante os anos 1990 e novamente durante os anos do fascista; os meios adotados são mais insidiosos: simplesmente não há a reposição do pessoal que se aposenta. Em nome da mítica eficiência do setor privado – eficiência que busca o lucro, e não o bem público – joga-se fora todo o conhecimento técnico acumulado pelos servidores com estabilidade.
O bem público é mantido e gerido pelo Estado com seus servidores, de carreiras “típicas” ou “não típicas”. Essa divisão, embora abstratamente pareça sensata, na prática serviu – e serve – apenas como instrumento para degradar o serviço público e piorar a qualidade dos serviços prestados. No dia a dia, quem serve à população na ponta, no nível da rua, são as carreiras “não típicas”; são esses servidores que justificam a existência e os custos do Estado.
Ora, se a noção de “carreiras típicas de Estado” não se sustenta e serve apenas para degradar os serviços públicos, parece claro que já passou da hora de abandoná-la e de pararmos de repetir essa lenga-lenga criminosa e antirrepublicana.
Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.