A história e a psicologia humana mostram que força e pujança são valores e criam exemplo. O imaginário dos povos é naturalmente instigado por aqueles que demonstram capacidade de prevalecimento, em última instância físico-material, pois o estágio derradeiro de todo conflito é a luta/guerra, que exige mobilização militar e econômica, uma vez que essas duas dimensões constituem, de fato, distintas funções de uma unidade, diferenciadas conforme as finalidades estratégicas e as exigências circunstanciais.
A separação entre o “poder brando” (soft power) e o “poder duro” (hard power), recorrente em certas escolas contemporâneas de Relações Internacionais, não passa, pois, de impostura cultivada pelos centros hegemônicos detentores do “poder duro”. Ao perpetuar a ilusão liberal de distinção ontológica entre persuasão e coerção e entre os seus respectivos e supostos campos de atuação, a sociedade civil e o Estado legitimam as assimetrias de poder entre os países fortes, que possuem primazia bélica, e os fracos, essencialmente desarmados.
Analisemos o caso da China contemporânea. O seu despontar geoeconômico e geopolítico no século 21, lastreado em profundo desenvolvimento técnico-científico-industrial, quantificado em contínuas e formidáveis taxas de crescimento, modificou estruturalmente os termos do debate político. Se o presente século se iniciou sob o mantra do “fim da história” e do “mundo sem fronteiras”, hoje essas ideias soam ingênuas, senão ridículas, até mesmo aos seus antigos defensores.
Para o Atlântico Norte, o fortalecimento chinês significa hoje risco e ameaça, forçando-o a abrir mão da fachada pacifista e humanitária e se engajar violentamente em guerras, invasões e ameaças. A Guerra na Ucrânia, fartamente financiada pela Otan, não deixa mentir sobre a leniência ocidental com o derramamento inútil de sangue e as arbitrariedades do títere Zelensky.
Para o Sul Global, por outro lado, o exemplo chinês coloca novamente em pauta, e mais do que nunca, a questão do desenvolvimento e da autonomia em relação aos centros capitalistas internacionais. Não se trata apenas de efeito simbólico, embora este não deva ser menosprezado, ainda mais em se tratando de potência não-ocidental e outrora colonizada, direta e indiretamente, como todo o Sul Global. Trata-se, também, do realinhamento das coordenadas geopolíticas pela diversificação das fontes de financiamento e ampliação das possibilidades de comércio exterior, advindas da emergência chinesa, reduzindo significativamente as oportunidades dos centros capitalistas imporem sanções e embargos contra os países em desenvolvimento.
No caso do Brasil, em particular, o arranco chinês despertou setores da opinião pública para a gigantesca e crescente defasagem do nosso País em relação à China e ao mundo como um todo.
O tema da “desindustrialização” veio à tona, carregando consigo o reconhecimento da necessidade de resgate e atualização de um projeto nacional de desenvolvimento. Naturalmente, a China se tornou o modelo mais evidente, pois, além de ser o mais bem-sucedido na atualidade, ocorre em país também de dimensões continentais e de grande população.
Passa relativamente despercebido, todavia, o fato de a China ter, no início do seu processo desenvolvimentista, sob a liderança reformista de Deng Xiaoping (1978-1990), buscado inspiração no Brasil para se modernizar. O desenvolvimentismo brasileiro, sobretudo o do Regime Militar, caracterizado pela abertura de novas frentes empresariais de investimento e de exportação, através do planejamento governamental, rechaçado pela esquerda e pelos nacionalistas brasileiros por seu suposto caráter “associado-dependente”, serviu de modelo para os tecnoburocratas chineses conduzirem a abertura de mercado, sem prejuízo da capacidade ordenadora e indicativa estatal.
Como afirma a professora Isabella Weber, autora do livro Como a China Escapou da Doutrina de Choque (ed. bras.: Boitempo, 2023):
Ainda segundo Weber, “o ponto alto dessa viagem foi o encontro com o arquiteto do milagre do Brasil, Delfim Netto” (p. 356). Os pontos de vista pragmáticos e gradualistas de Delfim, em relação ao controle da dívida externa e da inflação, fundamentaram os argumentos dos planejadores chineses contrários ao tratamento de choque dentro em seu País, amplamente defendido dentro do Partido Comunista Chinês (PCCh) por aqueles que desejavam acelerar a qualquer custo a transição para a economia de mercado. No fim, os moderados chineses, inspirados por Delfim Netto, foram os que, em linhas gerais, prevaleceram apesar de algumas derrotas pontuais.
Em outras palavras, a experiência desenvolvimentista brasileira e os ensinamentos de um dos seus principais planejadores, facilmente rotulados como “direitista” no Brasil, foram considerados exemplares pelas lideranças socialistas chinesas, em particular aquelas mais à “esquerda”. O que no Brasil capitalista se via como “direita” foi incorporado “à esquerda” na China socialista.
Ainda mais, os planejadores chineses registraram a tibieza do Investimento Estrangeiro Direto (IED) no Brasil em relação às zonas costeiras da China e a preferência brasileira pelo crédito externo como forma de financiamento. O modelo de desenvolvimento brasileiro, tanto e injustamente acusado de ser “associado-dependente”, seguia, na verdade, as recomendações do economista polonês Oskar Lange (1904-1965), um dos máximos dirigentes de seu país nos tempos do socialismo, que vislumbrava no crédito externo a alternativa “soberana” à instalação de multinacionais, pois preservaria o controle nacional do capital interno. Os chineses optaram pelo caminho inverso, não sem resistências internas, mas de modo radicalmente distinto do apregoado pelos “teóricos da dependência”.
Seria demasiado simplório afirmar que o desenvolvimentismo foi a nota comum ao Brasil do Regime Militar (mais amplamente da Era Vargas estendida, que foi o período de 1930 a 1990) e a China pós-1978. Muito mais do que “desenvolvimentismo”, ambos os países, e o Brasil antes da China, buscaram formas inovadoras de criação e gerenciamento de mercados através das instituições estatais.
Em vez da falsa e arbitrária dicotomia Estado/mercado, com que liberais e socialistas estiveram às voltas durante os séculos 19 e 20, os planejadores no Brasil e na China compreenderam que Estado e mercado eram dois momentos complementares e inter-relacionados da organização socioeconômica nacional. Da mesma forma que o Estado cria mercado, em função da capacidade superior de mobilização de recursos, dada, entre outros fatores, pelo monopólio monetário e pela anterioridade do dispêndio público, a ampliação do mercado fortalece a economia nacional a partir da qual o planejamento público orienta sua ação.
Leia também:
O amanhã da China: a paz
O desenvolvimento resultante, em um caso como em outro, quantificado em exuberantes taxas de crescimento do PIB, acima dos 10% anuais, não expressa nenhum “milagre”, mas o resultado da frutuosa sinergia entre a ação pública e a ação privada, entre o trabalho racionalmente organizado dos governantes e funcionários e dos empresários e trabalhadores.
Se o liberalismo e o marxismo viram, cada qual a seu modo, oposições insuperáveis entre Estado e mercado, entre o público e o privado e/ou entre empresários e trabalhadores, os governantes brasileiros de outrora e os chineses de hoje entendem cada par, não como dicotomia mas como eixos de coordenação dos fatores econômicos, com vista para a realização de objetivos nacionais permanentes extra-econômicos, como a soberania nacional e a segurança institucional, cujo substrato material não pode ser outro senão o dado pelo aperfeiçoamento das capacidades técnico-científico-industriais do País.
Como analiso, em detalhes, no meu livro, Desenvolvimento e Construção de Nações (Clube de Autores, 2022), tais considerações não eram novidade na história das nações e no moderno pensamento econômico, tendo constituído a prática dos reis e parlamentos mercantilistas europeus dos séculos 17 e 18, e das grandes unidades político-territoriais emergentes no século 19, como os Estados Unidos e a Alemanha, tendo sido teorizadas por ilustres pensadores como Bernard de Mandeville (1670-1733), Adam Smith (1723-1790), Friedrich List (1789-1846) e Henry Carey (1793-1879). O Brasil, primeiro, e depois China, não inventaram a roda, apenas aplicaram antigas lições a vastos e promissores conjuntos demográfico-territoriais, dotados de propósito comum pela ação planejadora dos respectivos Estados.
A despeito da antiguidade, elas foram sistematicamente escamoteadas e obnubiladas pelos centros ocidentais de poder, que se dedicaram, desde a década de 1970, a difundir falsas teorias desvinculadas da história e das realidades de quaisquer países, inclusive dos mesmos em que eram produzidas.
Os postulados sofísticos da Teoria Quantitativa da Moeda e da Teoria da Escolha Pública visavam, tão-somente, o desmantelamento das instituições públicas de coordenação econômico-social em prol do controle corporativo das altas finanças sobre o conjunto das relações nacionais, inclusive sobre a administração pública, transformada em apêndice repressivo do poder financeiro-capitalista.
A “Grande Divergência” entre Brasil e China a partir das décadas de 1980/1990 se explica, fundamentalmente, pela ampla aceitação, nos grupos dirigentes brasileiros, inclusive daqueles que acusavam o desenvolvimentismo militar de ser “associado-dependente”, das falácias neoliberais produzidas pelo Atlântico Norte, enquanto a China seguiu em frente, ajustando as lições aprendidas do Brasil dos anos 1960/1970 à sua própria realidade. O Brasil parou no meio do caminho, enquanto a China aprofundou aquilo que viu ter dado certo no Brasil. Três décadas depois, os resultados comparativos são mais do que evidentes.
Tamanho foi o estrago político e intelectual no Brasil que, hoje, muitas das nossas melhores cabeças, intrigadas com o sucesso chinês, não conseguem perceber nele nossas próprias experiências nacionais, em um passado não muito distante. Se o farol chinês servir para iluminar a história do Brasil, libertando-a do colonialismo mental em relação ao poder ideológico do Atlântico Norte, tal será valiosa contribuição da China para a formação da ordem internacional multipolar, na qual o Brasil, por direito e vocação, figura como um dos expoentes.
Felipe Maruf Quintas é doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF).