Cidadania – garantia dos direitos: aplicação da lei

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Supremo Tribunal Federal (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ ABr)
Supremo Tribunal Federal (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ ABr)

António Manuel Hespanha (1945–2019), em Nota à 2ª edição de O Caleidoscópio do Direito, O Direito e a Justiça nos Dias e no Mundo de Hoje (Edições Almedina, Coimbra, 2ª edição reelaborada – 2009 – reimpressão de 2014), após definir o direito como “um consenso comunitário reflexivo”, pois é o “único que pode fazer com que as normas correspondam a expectativas sociais alargadas”, lamenta que ele seja “aplicado, pela forma enviesada como os interesses são ponderados, pela denegação prática da justiça à enorme massa dos cidadãos”.

Hespanha conclui afirmando que o “direito transformou-se num poderosíssimo instrumento de exclusão política e social, num fator de generalizada irritação dos sentimentos comunitários de bom governo e de justiça”.

Nos três artigos anteriores, que tratam da Garantia dos Direitos, explicitamos nosso entendimento de que os direitos podem ser grupados nos individuais, na maior gama dos sociais, na especificidade do direito ao trabalho e na certeza e na capacidade de viver num Estado Soberano. Trataremos, agora, de refletir sobre a superação das corretas restrições, apontadas pelo pensador coimbrão Hespanha, a respeito da efetividade do direito, de sua possibilidade de ser colocado a serviço da Nação, de seus habitantes e de cada cidadão, em particular.

O poder é sempre único, e a estrutura da aplicação da lei também o será. Por falta de melhor, denominaremos “Foro” o órgão da estrutura do Estado que estará encarregado desde o registro civil das pessoas naturais ou das pessoas jurídicas até a aplicação das sentenças, passando por todo processo desde o registro da ocorrência, qualquer que ela seja, à eventual investigação, acusação/defesa, julgamento e acompanhamento judicial e administrativo dos fatos e decisões.

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Mas é importante recordar que Garantia dos Direitos é a segurança da efetiva vida cidadã. Voltemos ao grande Mestre António Hespanha, na mesma obra já citada: “Há cerca de 200 anos” (o século 18, das luzes, especificamos), estabeleceu-se o pensamento que “o direito tinha que ser uma criação do Estado, um reflexo de sua soberania, um resultado de sua vontade”. E isto foi denominado “democracia”, que se mostrou “um regime muito elitista, participado por muito poucos cidadãos”, e que procurou a coesão na aplicação do direito, em “um determinado processo”.

E vemos efetivamente que, quanto mais desigual uma sociedade, mas o direito se prende a questões processuais e não àquelas que se denominam substantivas do direito. Os últimos juristas no Brasil surgiram com a Era Vargas, que buscou reestruturar o Estado brasileiro, para um Estado em todo sentido desenvolvimentista, o estado nacional-trabalhista.

E conclui Hespanha: “As razões para se prescrever um processo regulado de fazer o direito eram justificadas do ponto de vista democrático, mas a sua complexidade, artificialidade e demora ainda aumentavam mais a distância entre o direito e os cidadãos.”

O Brasil neoliberal neste século 21 é, no aspecto do direito, como em todos os demais, um país que regrediu ao seu estado colonial: sem soberania e com a sociedade ainda mais desigual, similar à escravista.

Comprovando a crítica de António Hespanha, a aplicação da justiça se divide em dois “poderes”, o Executivo e o Judiciário, e a definição do que é direito e como obtê-lo está afeta a outro “poder”, o Legislativo. Realmente, ter definido e obter um “direito” é um trabalho que muitos poucos, a mínima minoria dos cidadãos, podem conseguir.

O direito é uma expressão civilizacional, por isso tem localização e duração determinadas. Há um século, não mais pela hereditariedade ou imposição divina, mas por ideologias que disputavam o domínio dos povos, Estados, no ocidente e no oriente, assumiram modelos autoritários, de diferentes concepções filosóficas: fascismos, comunismo, nazismos.

Foi uma cereja no bolo dos liberais que propugnavam pelo Estado ausente, Estado mínimo, que entregasse o poder da organização e da direção da sociedade ao capital, mais precisamente às finanças; um capital especulativo. Hespanha, na obra citada, escreve: “A União Europeia e a globalização econômica e comunicacional desvalorizaram o Estado e seu direito, ao proporem formas de organização política e de regulação que atravessavam as fronteiras dos Estados, desafiando aquilo que era considerada a soberania destes.”

E foi a vontade popular que esta democracia liberal mais profundamente atingiu. Sujeitando-nos a “valores da comunidade global”, a “law firms” e auditorias também internacionais, a tribunais privados que usam o dinheiro para acordos com prejuízo dos mais fracos, que António Hespanha resume numa “constituição econômica do mercado global”.

Bem sabemos a que isto levou o Brasil após 1990, com as desregulações financeiras e o neoliberalismo.

Todo o conjunto das ações para garantia do direito, poderíamos também denominar de segurança em face do poder nacional e diante da lei, em nossa proposta estará dentro de um único poder, nacional, definido e controlado pela participação popular direta. E suas estruturas serão preenchidas pela forma eletiva ou por concurso público, conforme suas finalidades.

Na forma eletiva constituindo, por área de aplicação do direito, os Conselhos Deliberativos e Auditores, que se distribuem por toda a estrutura do Estado, em todos os níveis e onde exista um órgão do poder público.

Cada “Foro” terá, em princípio mas não impositivamente, cartório de registro, delegacia de investigação, procuradoria e defensoria, juizado, tribunal, área de retenção, além daquelas para administração e apoio logístico às ações no âmbito do “Foro”. Ao Conselho Deliberativo, visto anteriormente, caberão a responsabilidade pela iniciativa, consultas, análise e aprovação das normas, regulamentos, diretrizes e políticas de trabalho e a auditoria e fiscalização de seus cumprimentos e da lisura administrativa.

Concluamos, nacionalisticamente, com o que escreveu, em 1933, o grande pensador e operador do direito e da política brasileira, o baiano Hermes Lima (1902–1978) no muitas vezes reeditado Introdução à Ciência do Direito, no capítulo que trata da Liberdade no Estado:

“O convívio humano impõe muitas restrições ao uso que os indivíduos podem fazer de suas faculdades. Esse convívio, além de repousar em certas uniformidades, em certas noções havidas pelo meio como indispensáveis à sua conservação, proíbe bom número de atos que a própria experiência demonstrou serem nocivos ao fato mesmo da convivência. Assim, é imprescindível, ao estudar-se o problema da liberdade, não perder jamais de vista que o homem se torna livre num quadro de relações recíprocas de dependência, de limitações e abstenções mútuas, que é a sociedade.”

E precisamos compreender que numa sociedade nem todos possuem igual interesse na liberdade e em suas consequências, o que ressalta a importância da consciência, elemento também integrante da cidadania, já visto nesta série.

 

Felipe Maruf Quintas é doutorando em Ciência Política.

Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.

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