Michel Foucault (1926–1984), filósofo e filólogo francês, denomina arqueologia o modelo de estudo centrado nas “influências”, ao invés da vida, das experiências do autor. Conforme L’archéologie du savoir (Éditions Gallimard, Paris, 1969) os “discursos” surgem de um conjunto complexo de relações, tanto das formais discursivas quanto das institucionais, e não de acordo com as visões de mundo, comuns e inarticuladas, do escritor (criador?).
“Há efeitos de verdade que na sociedade ocidental, que se pode dizer na sociedade mundial, se produz a cada instante. Produz-se a verdade. Essas produções de verdade não podem ser dissociadas do poder e dos mecanismos de poder, porque esses mecanismos de poder tornam possíveis, induzem essas produções de verdades, e porque essas produções de verdade têm, elas próprias, efeitos de poder que nos atam, nos vinculam” (Michel Foucault, Dits et Écrits, Gallimard, Paris,1994, tradução livre).
Ao discorrermos sobre os direitos sociais, devemos começar perguntando que força ou que poder no-los impõe? Há uma dinâmica diferente dos direitos individuais, aqueles que devem representar uma identidade, individualidade, uma exclusividade, à qual se restringe apenas como um ser da sociedade, daqueles outros estabelecidos para o conjunto social, onde o cidadão é uma parte de um coletivo, de um conjunto.
Karl Larenz (1903–1993), professor de filosofia do direito, questiona se a harmonia das aspirações humanas poderia sofrer regulações. Ao que adicionamos: qual seria o princípio fundador dos direitos da sociedade sobre seus membros?
O professor alemão considera a participação, “em união com o princípio da igualdade, de importância extraordinária, elemento fundamental na construção (do direito) de um Estado” (Karl Larenz, Derecho Justo, Fundamentos de Etica Juridica, tradução para o espanhol do original alemão de 1985 pelo professor Luis Díez-Picazo, Civitas Ediciones, Madrid, 2001).
Vê-se, então, que a participação implica uma igualdade. Reside aí, portanto, ser a construção da cidadania paralela à construção da regulação da vida social. Ora, apenas em processos revolucionários se observa, na história, a simultaneidade da elaboração da norma jurídica com a total participação dos agentes sobre os quais ela incidirá.
Os freios, os amortecedores sociopolíticos, que se observam na dinâmica dos governos, são a condição de manter o poder sem convulsões, ou sob um aceitável sistema opressor, de maneira a acomodar as tensões sem prejuízo dos objetivos institucionais maiores.
Portanto, as pedagogias coloniais, as aberturas políticas, as condescendentes e tolerantes concessões econômicas, ao fim apenas evitam a mudança efetiva, participante em condições igualitárias, do povo na formação de seu Estado Nacional, que seria efetivamente democrático.
Feitas estas ressalvas, buscaremos os conteúdos a serem garantidos, pois os processos, os procedimentos, ainda que também aflorem, vez por outra, fogem aqui do nosso escopo.
Leiamos alguns trechos de renomados juristas:
“A mais avançada, sofisticada e requintada ordem jurídica que o gênio humano logre instituir para assegurar a distribuição de justiça a um povo, não será suficiente para prevenir desordens, surtos de violência e explosivas manifestações populares, se não estiver dotada dos adequados meios democráticos que assegurem a abertura de permanentes, eficientes e suficientes canais de comunicação institucionais de contrapoderes, aptos a conduzirem, pacificamente, interesses, insatisfações, indagações, reivindicações e revoltas, que eclodem nas sociedades, junto aos órgãos de Estado que lhes deem respostas sem armas”, inicia o administrativista brasileiro Diogo de Figueiredo Moreira Neto sua conferência, na Faculdade de Direito, da Universidade Nova de Lisboa, em 20 de outubro de 2010, (Diogo Moreira Neto, Novas Mutações Juspolíticas, Editora Fórum, Belo Horizonte, 2016).
E, na mesma obra, Moreira Neto dispõe: “Tornou-se necessário transcender a estreiteza funcional de dois esgotados paradigmas da modernidade: a exclusividade da produção do direito atribuída ao Estado e o ‘dogma’ da tripartição dos poderes”. Esvaíam-se assim a criação da lei e o legislativo comprometido partidariamente, como obrigatória intermediação para legitimação democrática.
Observe, o preclaro leitor, a unicidade do poder, que vimos estabelecendo em artigos anteriores, e a participação direta, em todos os níveis da administração pública, com os Conselhos Deliberativos, criadores e reformadores das normas impositivas, os novos instrumentos do exercício da democracia.
Completa este apanhado jurídico o conceito de soberania, trazido pelo juiz e filósofo do direito, o alemão Georg Jellinek (1851–1911) que encima todo escalonamento jurídico, como parte essencial do sistema legal.
Mas qual seria a norma suprema? Aproximamo-nos da ideia de Carl Schmitt (1888–1985) da forma plebiscitária gerida pelo presidente ou o funcionário mais elevado responsável pelo Estado Nacional.
É oportuno transcrever trecho de “A polêmica travada entre Kelsen e Schmitt sobre quem deve ser o Guardião da Constituição e a recepção dessas teorias pela Constituição Federal de 1988”, do mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público de Brasília (IDP) Vinicius Xavier Ferreira, publicado no portal Âmbito Jurídico, em 1/10/2017:
“Dentro dessa visão é que se torna possível compreender a assertiva de Schmitt segundo a qual ‘[o] presidente do Reich encontra-se no centro de todo um sistema de neutralidade e independência político-partidárias, construído sobre uma base plebiscitária’. Nessa concepção, todo o serviço público, e não só o judiciário, deve estar a serviço de toda a população, e não de um parlamento fragmentado por diversas concepções ideológicas e políticas”.
E, ainda: “A Suprema Corte Americana não é um exemplo de guardião da constituição, mas antes se ‘apresenta, na realidade, como guardiã de uma ordem social e econômica, a princípio não discutível, perante o estado’. E prossegue afirmando que quando um tribunal julga determinado caso, seja ele administrativo ou penal, não está a guardar a constituição, senão decidindo determinado caso litigioso. Não se pode olvidar que o modelo de controle judicial de constitucionalidade americano é um modelo difuso, segundo o qual qualquer juiz pode – e deve – afastar, no caso concreto, determinado ato normativo que contrarie a Constituição”. Sobre esta matéria, leia-se também do jurista gaúcho Lenio L. Streck, Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, Revista dos Tribunais, SP, 2014, 4ªedição.
Concluindo esta polêmica sobre as bases para formulação e estabelecimento do direito social, lembremos o alerta do grande constitucionalista coimbrão José Joaquim Gomes Canotilho, em Brancosos e Interconstitucionalidade, Itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional (Edições Almedina, Coimbra, 2008, 2ª edição, revista):
“O referendo traria para o campo político militantes ativos em torno de problemas concretos. Este tema merece, como é óbvio, investigações sociológicas cuidadosas. A ‘politização do concreto’ tão cara aos defensores da ‘democracia participativa’ parece estar longe de grande parte dos esquemas referendários. Começamos, precisamente, por um paradoxo – o referendo francês revela o ‘eleitor branco’ e o ‘abstencionista’ como novos modelos de estar na política. Longe, portanto, de tornar-se militante. Longe das lógicas dos ‘médicos sem fronteiras’, do ‘SOS-racismo’, dos ‘ecologistas profundos’. O judeu português, marrano de Amsterdam, Bento de Espinosa há muito nos acautelou: ‘Os homens enganam-se quando se julgam livres.’ Têm consciência das suas ações, mas são ignorantes quanto às causas que as determinam”.
Sem que haja uma ordenação qualitativa, o primeiro direito, dos direitos sociais, a ser exposto é o direito político. O que se pretende estar aí incluso?
Basicamente as condições participativas. Temos uma polêmica não concluída: participar é uma opção ou um dever. Na conceituação da cidadania, em 1995, como “paridade de participação”, Nancy Fraser abre a questão que resultará no importante N. Fraser e Axel Honneth, Redistribution or Recognition? A political-philosophical Exchange (Verso, London, 2003), propondo a perspectiva dualista, que considera as categorias da redistribuição e do reconhecimento como indispensáveis, porém mutuamente irredutíveis.
Outro direito social é o econômico. O jurista baiano Orlando Gomes (1909–1988) e o português João Antunes Varela (1919–2005) publicaram, em 1977, Direito Econômico (Edições Saraiva, SP) que assim entendiam: “Compreende as normas relativas às relações econômicas”, estejam em códigos ou leis especiais, e que digam respeito aos “contratos de compra e venda, de locação, de crédito, de serviços e obras, aos negócios cambiários, às patentes de invenção, às sociedades mercantis, bem como aos direitos de propriedade e posse incidentes em bens de produção”. Sem demérito para estes consagrados mestres, a enunciação do que constitui um domínio do direito, um conhecimento intrinsecamente social, será sempre incompleto, senão impróprio e limitado no tempo.
Preferimos a citação de Friedrich Engels, encontrada no clássico trabalho do ministro Hermes Lima (1902–1978), Introdução à Ciência do Direito (Livraria Freitas Bastos Editora, RJ-SP, 1962, 12ª edição): “O direito não deve somente corresponder à situação econômica geral e ser sua expressão, mas, por igual, uma expressão sistemática dela, de modo que suas contradições internas não apareçam ostensivamente. A fim de lograr esse objetivo, o reflexo fiel das relações econômicas dilui-se gradativamente. Isso é tanto mais exato quanto acontece raramente ser um código a expressão brutal, intransigente, autêntica, do domínio de uma classe, pois não seria tal coisa já de si mesma contrária à noção de direito?”.
Ainda pertencem ao direito social aqueles relativos à assistência que o Estado deve prestar para a sadia existência dos cidadãos, à previdência, ao ensino e toda forma de proteção, incentivo e divulgação dos conhecimentos, em especial da cultura nacional, a comunicação de massa sem privilégios, e o intercâmbio informacional entre os cidadãos e o Estado.
Cada uma dessas áreas do direito social, além das matérias substantivas, deve desenvolver seu processo, o mais simples e adequado às demandas populares, com sistema rápido, eficiente e seguro de julgamento.
A formulação desses direitos deve se dar com a ampla participação direta da população, embora reconheçamos as restrições apontadas por Gomes Canotilho. Mas suas superações são objeto de um dos direitos sociais: o político.
Felipe Maruf Quintas é doutorando em Ciência Política.
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.