Criado no Ocidente e relativamente recente, uns 500 a 600 anos, o capitalismo é o herdeiro da ilusão religiosa monoteísta. E se considera universal, sem qualquer base factual ou mesmo filosófica.
Assim, tem como natural a unipolaridade e a permanente luta entre os seres humanos pelo enriquecimento, vide a Constituição plutocrática dos Estados Unidos da América (EUA), de 1787, em vigor desde 4/3/1789, que, com apenas 27 emendas, já completou 236 anos.
Mas não se trata somente, embora muito significativo, de trazer documento valorizado para a construção dos Estados nacionais. Poder-se-ia mesmo afirmar que a Constituição estadunidense apenas exemplifica o trabalho secular do poder em impedir ser derrubado qualquer opositor.
O caso mais dramático é o da criação do judaísmo, um Deus só para os hebreus, que colocou todos demais povos/nações na oposição, e do semitismo (1897, Theodor Herzl e Chaim Weizmann) que hoje justifica o genocídio palestino e que já avança para o mundo árabe.
Como estabelecer o cenário das polaridades se o mundo fosse de interesses hegemônicos?
Poder-se-ia afirmar que desde 1912, quando Alexander Bogdanov (pseudônimo de Aleksander Aleksandrovitch Malinovsky – 1873-1928) editou seus Ensaios de Tectologia, já havia a percepção da fragmentação da sociedade pela divisão do trabalho. Uma visão próxima mas diferente do marxismo, o que fez de Bogdanov um proscrito, censurado por Lenin, ainda que, desde 1914, lutasse ao lado dos bolcheviques.
Passaram-se mais de 70 anos para que Bogdanov fosse redescoberto e encontrasse suas edições em russo, inglês e português, esta última Ensaios de Tectologia, A Ciência Geral da Organização, na tradução de Jair Diniz Miguel, com um ensaio de Rodrigo Nunes, para Editora Machado (RJ, 2024).
A dialética de Bogdanov centrou-se na “tarefa da humanidade em dominar a natureza”. Escreve na obra citada: “O ser humano se organizou durante séculos, formando coletivos de trabalho, desde as pequenas comunidades tribais da era primitiva até a cooperação moderna entre milhões de pessoas, de forma ainda inconsciente para elas, mas absolutamente verdadeira.”
E acresce: “Na complexidade do organismo humano e da sociedade estão ocultas forças elementais, cegas e conflitantes, que se digladiam entre si e, por vezes, são tão terríveis e destrutivas quanto as forças da natureza, a sombria mãe da humanidade. O destino nos fez testemunhas da mais destrutiva e mais monstruosa explosão dessas forças; mas a própria história humana nos fala disso claramente, o encadeamento dos séculos repleto de fogo e sangue, cheio de horrores da fome, do trabalho exaustivo e da impotência de milhões, lado a lado com a opulência parasitária e a lei cruel de poucos.”
Construção das polaridades no século 21
“Ser livre é ser proprietário de si mesmo e, por extensão, dos meios e produtos de seu trabalho” (Crawford B. MacPherson, La Théorie Politique de l’Individualisme Possessif, Folio Essais, Paris, 2004), cita Daniel Bensaïd no ensaio que apresenta os Debates de Karl Marx sobre a Lei referente ao Furto de Madeira (Karl Marx, Os Despossuídos, Boitempo, São Paulo, 2017).
Sendo o homem “proprietário” de si mesmo, o corolário é ser um objeto, nunca um ser com qualificações únicas, que se distingue de todos demais seres humanos. Se encontramos esta referência em marxistas, e no próprio Marx, cai por terra o ideal libertário que se busca em Marx e Lenin.
As polaridades se dão no modo de situar o homem na sociedade e da natureza. Deste modo se descarta de imediato a unipolaridade ou qualquer hegemonia que não nos leve a multipolaridades, o modo democrático de aceitação do outro e dos seus interesses.
Em maio de 2018, comemorando os 200 anos de nascimento de Karl Marx, Xi Jinping, presidente da República Popular da China (China), o chamou de “maior pensador dos tempos modernos”.
Disse o Presidente Ping: “O marxismo, como um amanhecer espetacular, ilumina o caminho da humanidade na sua exploração das leis históricas e na busca da sua própria libertação”. “Duzentos anos depois, devido às enormes e profundas mudanças na sociedade humana, o nome de Karl Marx é ainda respeitado em todo mundo e sua teoria ainda brilha com a luz brilhante da verdade” (redação da revista Veja, 4/5/2018, com informações das agências EFE e Reuters).
Xi Jinping não mentia e seria desastroso e inteiramente fora de propósito se o fizesse. Mas expunha uma vertente do que chamaríamos da complexa e exitosa ideologia da China construída no século 21.
A ideologia chinesa não se formou no século 19, com Marx, nem com Thomas Hobbes (1588-1679) e John Locke (1632-1704), pais do liberalismo, e muito menos com os criadores da Escola Austríaca de Economia – Carl Menger (1840-1921), Eugen von Böhm-Bawerk (1851-1914) e Ludwig Heinrich von Mises (1881-1973).
A ideologia da China só não é anterior ao monoteísmo judeu (1.800 a.C.), mas antecede os pré-socráticos gregos (500 a.C.) e inspirou o budismo de Siddhārtha Gautama (563 a.C.-483 a.C.). Ela vem do Mestre Kong, Confúcio, e seu contemporâneo Lao Zi (viveram entre 571 a.C. e 479 a.C.), que deixaram, respectivamente, Os Analectos e o Tao Te King.
Este milenar pensamento teve o ineditismo de, pela primeira vez, nas concepções do humano, centrar-se no próprio homem, dispensando a interferência divina. Leia-se em Anne Cheng (História do Pensamento Chinês, tradução de Gentil Avelino Titton do original francês, 1997, para Editora Vozes, Petrópolis, 2008): “Mais que um homem ou um pensador, e até mais que uma escola de pensamento, Confúcio representa um verdadeiro fenômeno cultural que se confunde com o destino de toda a civilização chinesa. Este fenômeno, surgido no século 5 a.C., manteve-se durante 2.500 anos e perdura ainda hoje, após passar por várias transformações e sobreviver a muitas vicissitudes”.
O “aprender” ocupa lugar central no pensamento de Confúcio e na política da China, pois, com sua imensa população, se destaca pela alfabetização de todos habitantes maiores de 17 anos, o que países de muito menor número de pessoas naturais e residentes, como os EUA, o Brasil e mesmo a França, não atingiram nesta universalidade.
Certamente, no discurso parcialmente transcrito de Ping, ele fazia referência à grande mudança ocorrida com a Revolução de 1949. Porém os 50 anos que se seguiram no século 20 foram de imensas transformções, chegando a ter, por um momento, uma China neoliberal capitalista com Deng Xiaoping (1904-1997), governando entre 1978-1992.
Entendemos que a China do século 21 assume o papel da maior potência do Planeta, com novo estágio civilizatório. É obra deste século com Hu Jin Tao, governando de 2002 a 2013, e de Xi Jinping, dirigindo-a desde 2013.
Que China é essa? A que se funda em Confúcio (a integralidade e universalidade do homem, capaz de aperfeiçoar-se indefinidamente), “aprender alguma coisa para poder vive-la a todo momento” (Os Analectos, livro I.1). Na convivência com o processo de constante aperfeiçoamento na produção de bens e na evolução tecnológica de sua produção e da prestação de serviços, com ênfase nas tecnologias da informação, sem receio de adotar práticas capitalistas. E tudo sob a organização do Estado conforme proposto pelo marxismo, sem subordinações escravistas e com a mais ampla e possível participação de todos.
É um país só possível pela existência dessas ideologias sem exclusão de qualquer uma, mas harmonizadas no sentido do bem estar de todos.
A multipolaridade chinesa
Com a investidura de Donald Trump como o 47º presidente dos EUA, em 20 de janeiro de 2025, o mundo passou a enfrentar um turbilhão econômico, político, midiático, cujos objetivos ainda não se tornaram bem conhecidos.
Mas têm causado apreensão e reações defensivas, poucas apoiadoras, como de Benjamin Netanyahu, do Estado de Israel, que persegue a expansão territorial até os limites desejados pelos sionistas para a constituição do Estado Judeu. Este, como descrito por Theodor Herzl (1860 – 1904), compreende onde hoje estão a Palestina, Líbano, Síria, Jordânia, parte oeste do Iraque e norte da Arábia Saudita, Kuwait, e parte do leste do Egito, ao longo do Mar Vermelho, até a fronteira com a Eritréia.
Aparentemente, Trump pretende recompor o Ocidente dominador, consolidado em menos países (veja-se, como exemplo, a transformação do Canadá no 51º dos estados dos EUA) e subordinados ao poder hegemônico estadunidense. Para o que, o primeiro passo está no embaralhamento de ideias e objetivos facilitando que os grandes das mídias, como Elon Musk (X), Jeff Bezos (Amazon), Tim Cook (Apple), Mark Zuckerberg (Meta), entre outros, doutrinem os próprios estadunidenses, os habitantes de suas colônias e demais países para agirem conforme os volúveis interesses da plutocracia dominante.
Trata-se, portanto, de restaurar o sistema que parecia morto após as duas grandes guerras da primeira metade do século 20, aquele do Império onde o Sol nunca se punha.
A multipolaridade chinesa é a verdadeira materialização da política externa na China. Relações país a país, como preconiza esta Nova Rota da Seda, criada por Xi Jinping, em 2013, com nome de Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR).
A Wikipedia, fundada em 2001 por Jimmy Wales (1966), empresário da “internet”, e Larry Sanger (1968), “engenheiro de software”, em São Francisco (EUA), é classificada como entidade filantrópica, mas que arrecadou, no ano fiscal 2022/2023, mais de 180 milhões de dólares estadunidenses (USD), explícitos no seu balanço.
Pois bem, a Wikipedia define a ICR como “estratégia de desenvolvimento adotada pelo governo chinês envolvendo desenvolvimento de infraestrutura e investimentos em países da Europa, Ásia e África”. Nada define melhor a política diversionista adotada por Trump e seus parceiros plutocratas midiáticos. Verdadeiro “como queríamos demonstrar”, o “cqd” de teoremas de matemática no ensino médio.
Quando Xi Jinping recriou com novo nome e mais amplos propósitos a Nova Rota da Seda, já existiam, com a ideia não hegemônica e com a participação da China, a Organização para Cooperação de Xangai (OCX) e os Brics.
A Organização para Cooperação de Xangai (OCX) teve início em 1996, com a China, então dirigida por Jiang Zi Min, com a Rússia, o Cazaquistão, o Quirguistão e o Tadjiquistão, sendo denominados os “Cinco de Xangai”. Em 2001 toma nova forma e amplia as participações constituindo a OCX.
O Bric surge em 2001 do acrônimo foi cunhado pelo economista Jim O’Neill, do Goldman Sachs, com as iniciais dos países em desenvolvimento que, então, se destacavam: Brasil, Rússia, Índia e China. Em 2011, a África do Sul passa a ser membro dos Bric, mudando a sigla para Brics (South Africa).
Atualmente são também membros plenos: Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Indonésia e Irã. E parceiros: Belarus, Bolívia, Cazaquistão, Cuba, Malásia, Tailândia, Uganda e Uzbequistão.
Porém o modelo da ICR é que permite a mais efetiva multipolaridade, pois cada parceiro dos negócios interage com total soberania com a China. Muito eventualmente, em grandes obras de infraestrutura, como ferrovias e hidrovias, envolve mais um ou dois parceiros, todos soberanos, mas que exige, eventualmente, ceder em algum ponto para que haja a integral concordância. O princípio da ICR é ter ambas as partes igualmente satisfeitas com o negócio, seja aquisição de produto, seja prestação de serviço, seja até uma consultoria técnica.
Tão exitoso é este modelo que, na turbulência de uma primeira taxação, a China foi considerada beneficiada, e Trump elevou as tarifas para todos produtos chineses entrarem nos EUA para 104%. A China revidou com 84%, para produtos estadunidenses importados pela China. Algo que parecia não ter fim.
Lin Jian, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, teria afirmado, conforme a BSB Revista, que “se (os EUA) persistirem em desconsiderar os interesses comuns de ambos os países e da comunidade internacional e insistirem em escalar o conflito comercial e tarifário, a China, como sempre, lutará até o fim”, apesar de considerar que “em uma guerra comercial, não há vencedores”.
Em toda esta confusão, veja-se nas oscilações das Bolsas de Valores e conversões cambiais, haverá alguma intenção diversionista de Trump? Ou já não é a economia que motiva os plutocratas estadunidenses que cercam Trump? Ou será a guerra contra a China, que promete ser mais uma derrota como a Ásia infligiu aos EUA no século 20?
Ficam-nos alguns critérios para avaliar os fatos que se sucederão.