Cognição: comunicações na conquista do poder e outras considerações

Como o domínio da informação molda consciências, apaga memórias históricas e fortalece hegemonias globais

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Foto de Debby Ledet na Unsplash

Miguel Nicolelis (1961), em O verdadeiro criador de tudo, como o cérebro humano esculpiu o universo como nós o conhecemos (Editora Planeta, SP, 2020), distingue dois tipos de informação: aquela medida pelo grau de certeza da mensagem, que denomina shannoniana, em homenagem ao engenheiro estadunidense Claude Shannon (1916-2001); e a gödeliana, reverenciando o matemático e lógico tcheco Kurt Gödel (1906-1978); S-info e G-info, respectivamente. Enquanto a primeira se vale do código binário e digital, a gödeliana é contínua e analógica, não pode ser tratada por bits e de modo discreto, pois é um processo orgânico.

Ambos os sistemas são usados na conquista dos corações e mentes dos povos. Enquanto a S-info se vale dos instrumentos repetitivos, a G-info busca a emoção. No artigo anterior, tivemos um exemplo da G-info no célebre romance da literatura brasileira Dom Casmurro, trazendo à consciência, e esclarecendo, situação extremamente íntima.

Atualmente o domínio das denominadas “plataformas de comunicação”, para reconquista do poder estadunidense, ficou evidente na posse de Donald Trump cercado pelos proprietários e principais executivos (CEO) da Space X, Elon Musk, que ganhou uma secretaria no Governo, da Amazon, da Meta, da Oracle, Alphabet e o CEO Sundar Pichai da Google, entre outros.

A situação mostra também o realismo com que Trump encara a guerra, diante da derrota na Ucrânia e numa eventual tentativa de tomada de Taiwan, diante da Rússia e da China, respectivamente. No entanto, o mais notável feito da comunicação no século 20 foi dar o domínio do poder no mundo Ocidental (Américas, Europa, parte da África e Oriente Médio) às finanças apátridas. S-info e G-info foram usadas intensamente a ponto de criar certezas diante de situações opostas às vividas pelas vítimas.

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Paulo Fagundes Visentini, na Introdução de Revoluções e Regimes Marxistas, trabalho de diversos professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) por ele coordenado (Leitura XXI, SindBancários, Nerint-UFRGS, Porto Alegre, 2013), escreve:

“O historiador Eric Hobsbawm definiu o século 20 como A Era dos Extremos, marcado por grandes guerras, matanças e regimes extremistas. Henri Luce (Revista Life, 1941), por sua vez, forjou uma expressão que faria escola: seria O Século Americano, devido à substituição da hegemonia europeia pela dos Estados Unidos da América, tanto pelo poder da nação como pelo modelo triunfante, o American Way of Life.”

Prossegue Visentini, ainda na Introdução:

“Há mais de duas décadas, o triunfante paradigma neoliberal e pós-moderno, que afirmou o fim da história, tornou dominante um discurso historiográfico que desqualifica as conquistas sociais das revoluções marxistas do século 20, apresentadas simplesmente como repressivas e ineficientes.” E cita Roger Keeran e Thomas Kenny (O socialismo traído. Por trás do colapso da URSS, Avante, Lisboa, 2008): “A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) terminou porque uma sociedade governada pela classe trabalhadora é uma ilusão; não existe uma ordem pós-capitalista”. E prossegue Visentini: “Apenas o mercado (capitalismo não regulamentado) e as iniciativas individualistas teriam sentido, e uma nova geração sequer tem conhecimento dos valores igualitários e libertários, da luta e mobilização popular, das políticas sociais e do desenvolvimento econômico que marcaram as revoluções e regimes marxistas”.

A Iugoslávia se desintegrou em meio a guerras incentivadas pelos Estados Unidos e por países da Europa Ocidental. Após 34 anos de crescimento social sob a liderança de Josip Broz Tito (1892–1980), marcados por solidariedade entre os povos, vizinhos que antes conviviam pacificamente passaram a se odiar por motivos até então inimagináveis, como religião e raça.

A União Soviética de Josef Stalin (1878-1953) transformou-se numa “besta negra” para o imaginário liberal, que persiste, ainda em 2025, para os nórdicos e europeus do leste, que devem, no entanto, suas independências do nazifascismo à morte de milhares de soldados russos.

Pode-se dizer que a junção da S-info com a G-info transformou, na cognição popular, água em pó, sol em chuva, por mais que se deparem com suas diferenças no cotidiano da existência.


Uma existência irreal e prejudicada?

Na abertura de Revoluções e Regimes Marxistas, encontra-se a seguinte citação:

“Em meados dos anos 1990, fiquei intrigada pelos comentários feitos por uma guia turística (no leste da Alemanha), que ainda reproduzia a interpretação histórica da República Democrática da Alemanha (RDA). Quando eu a questionei sobre suas experiências e vida antes de 1989, ela retorquiu enfaticamente que era possível levar “uma vida perfeitamente normal” na RDA. Essa mesma afirmação eu tenho ouvido repetidamente desde então de amigos, anfitriões e pessoas que entrevisto (no leste); e os estudantes alemães orientais que cursam o University College London frequentemente me dizem ficar chocados com as reportagens da imprensa e dos livros de história sobre quão “má” era sua “ditadura” – uma contradição radical em relação às suas próprias memórias da infância feliz e as “vidas perfeitamente normais” de seus pais, amigos e parentes.” (Mary Fulbrook, The People’s State, Yale, 2005).

Embora estatisticamente inexpressiva, minha experiência pessoal com nascidos e criados no período dos governos socialistas na Europa não difere da relatada por Mary Fulbrook. Nada, no entanto, supera a imensa fantasia que é a História dos Estados Unidos da América, por diferentes autores e diversificados objetivos, tais como o da narrativa da independência, da formulação da constituição e das guerras para garantir o proselitismo estadunidense num mundo de disputas entre ideologias, a denominada Guerra Fria.

Iniciemos pela descoberta da América pelos europeus que passavam fome, sofriam com as pestes, perseguições religiosas, entre os séculos 16 e 18.

A conquista da África se dera com objetivos estritamente colonizadores, como foi a organização do Brasil Colonial. Mas, para a costa leste da América do Norte, os poderes dos Estados europeus não estavam dispostos a investir e deixaram (ou mesmo promoveram) iniciativas individuais como relata Herbert Aptheker, na obra de 1959 (Uma Nova História dos Estados Unidos: A Era Colonial, na tradução de Maurício Pedreira para Editora Civilização Brasileira, RJ, 1967): “A fundação das colônias que vieram a constituir os Estados Unidos foi uma consequência do aparecimento do capitalismo na Europa. Em troca, essas colônias foram uma importante fonte de riqueza e poder para os soberanos das nações capitalistas em desenvolvimento.”

A África vinha sendo ocupada pelos europeus desde o século 15. A situação dos continentes ao fim da Idade Média europeia era bastante diferente da que se tornou após a descoberta do Novo Mundo, as Américas.

Desde o século 10, o país mais avançado tecnologicamente era a China, que não tinha o ímpeto conquistador. Pelo contrário, desde 220 a.C., vinha construindo o que se tornou a Grande Muralha da China, a maior estrutura militar de defesa terrestre. Diversos materiais foram usados nos 21.196 km, de seis a sete metros de altura, que vão de Dandong, na foz do rio Yalu, fronteira com a Coreia do Norte, a leste, e, a oeste, ao Lago Lop, como é conhecido um conjunto de lagos salgados e pântanos entre os desertos de Taklamakan e o de Gobi, onde foram realizados, no passado recente, testes nucleares.

A chegada à Europa de produtos indianos e chineses despertou a cobiça de encontrar uma rota que não estivesse no domínio territorial muçulmano. Esta rota seria contornando a África, que passou a ser então ocupada por europeus: portugueses, espanhóis, franceses e ingleses, majoritariamente.

Com as tecnologias vindas da China – a bússola e a pólvora, especialmente – foi possível se aventurar “por mares nunca dantes navegados”, descobrindo a América, em 12 de outubro de 1442, e chegando a Calicute (Índia), em 20 de maio de 1498. A Europa se enriquece.


Qual é a verdadeira história dos EUA?

O premiado documentário Trilha sonora de um golpe de Estado (2024), escrito e dirigido por Johan Grimonprez e produzido por Daan Milius e Rémi Grellety, mostra sem tergiversar que o assassinato, em 17 de janeiro de 1961, do líder congolês Patrice Lumumba (1925-1961) teve a participação direta do 34º presidente dos EUA, Dwight (Ike) Eisenhower (1890-1969).

O documentário conta com imagens e narrativas os acontecimentos, desenrolados no ano de 1960 e 1961, que cercaram a independência da República do Congo do reino da Bélgica. Na época, a Monarquia Constitucional Federal tinha como o Primeiro-Ministro um representante da coligação de centro direita do Partido Social Cristão com o Partido Liberal.

Em 1960, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial e enviou tropas ao Congo para proteger o país contra agressões externas e manter a independência e a integridade territorial, lá permanecendo até 1964.

O filme mostra todos os envolvidos, conscientemente ou não, na trama assassina de Washington, envolvendo os mais renomados artistas de jazz, de onde se tirou o título. Foi um episódio da história de um país que desde o seu início é uma farsa, os EUA.

Muito antes de 19 de novembro de 1620, quando o navio Mayflower, partindo de Southampton, sul da Inglaterra, chegou com os puritanos na América do Norte, diversos europeus já lá aportavam, fugindo da fome, da peste, das péssimas condições de vida na Holanda, na Escócia, na Irlanda, na França, na Suécia, na Espanha e mesmo na Inglaterra e País de Gales.

Como narra o historiador Ray Raphael em Mitos sobre a fundação dos Estados Unidos: a verdadeira história da independência norte-americana (tradução do original de 2004, por Maria Beatriz de Medina, para Civilização Brasileira, RJ, 2006), um país que, por século e meio, se constituiu por diversas etnias, idiomas, costumes, teve sua “fundação claramente definida com obra de uma única geração”.

“Todos os dias os políticos invocam os ‘nossos fundadores’ em apoio a alguma causa totalmente estranha à experiência norte-americana do final do século 18. Põem o passado – mais exatamente, um passado que imaginam – a serviço do presente político”. “Muito do que achamos que é ‘história’ não é movido pelos fatos, mas sim por essas exigências narrativas”.

Outro feito notável onde a G-info se associa à persistência da S-info é a Constituição estadunidense (1787) que, dentro de dois anos, completará 240 anos e conta, até hoje, com 27 emendas. Entre elas, a mais conhecida e referida é a Primeira Emenda, que estabelece a liberdade de expressão e de imprensa e a separação entre a Igreja e o Estado. As dez primeiras emendas constitucionais foram apresentadas até 1789.

Comparemos com a Constituição Brasileira, promulgada em 5 de outubro de 1988, que ao completar seu 36º aniversário já incluíra 134 emendas ao texto original. Isso se deve ao fato de ser elaborada quando o Brasil ainda tinha o sonho de país nacionalista e desenvolvimentista. Estas emendas foram substituindo este sonho pela realidade neoliberal financeira que nos oprime desde a submissão ao Consenso de Washington (1989).

O que explica, porém, a persistência e a longevidade dos preceitos constitucionais estadunidenses? O fato de ser uma Constituição para uma plutocracia, para o governo dos ricos, que diretamente, como no caso dos Bush e do Donald Trump, ou indiretamente, como com Ronald Reagan e Barack Obama, são somente a voz (e ação) dos donos. E, quando a consciência ou um interesse inaceitável dos bilionários se coloca à decisão do presidente que recusa aprová-lo, ele sofre um atentado, como se sabe agora com a liberação dos documentos da morte de John F. Kennedy, por decisão de Trump.

Existe um sistema de comunicação voltado a apagar da cognição coletiva o passado e a história dos povos. Ao escolhermos os Estados Unidos — que estão longe de ser a “pátria da liberdade e da democracia” — é porque suas colônias, como o Brasil e grande parte da América Latina, ainda sofrem os efeitos da Doutrina Monroe (1823) e do Destino Manifesto (1845) e sequer têm condições de construir uma história própria quando ela colide com os interesses norte-americanos.

Essa influência vai além das Américas, alcançando a África, como retratado no documentário Trilha Sonora de um Golpe de Estado, e a Ásia, como exemplificado na Conferência de Bandung (1955), onde versões estadunidenses e soviéticas se uniram para impedir o surgimento de uma terceira força política internacional.

O poder depende mais da comunicação do que das realizações, como se vê no Brasil a partir de 1990, sob o domínio neoliberal financeiro, retrocedendo na educação (o governador bolsonarista de São Paulo, impedido pelo Poder Judiciário, desejou leiloar as escolas públicas) e ampliando as redes privadas de comunicação digital.

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