Há exatos 200 anos, a atitude autoritária e retrógrada de Dom Pedro I impediu que o Brasil tivesse a mais avançada, para época, e a mais duradoura e humanista solução para o País escravista e exterminador dos habitantes originais.
O autor desta proposta foi José Bonifácio de Andrada e Silva e ela se materializou no projeto que apresentou à Assembleia Constituinte de 1823.
Primeira assembleia constituinte
Proclamada a Independência a 7 de setembro de 1822, tornava-se necessário organizar institucionalmente o Brasil. Para tanto, em 3 de maio de 1823, formou-se a Assembleia Constituinte com bacharéis, militares, padres, grandes proprietários de terra, isto é, a elite do País. Foi composta por 100 deputados provinciais, porém só compareceram efetivamente 60, 12 se ausentaram, e somente as seguintes províncias foram representadas (em parênteses a quantidade de deputados): Alagoas (3), da Bahia (10), Ceará (6), Espírito Santo (1), Minas Gerais (14), Paraíba (3), Pernambuco (7), Rio de Janeiro (8), Rio Grande do Sul (2), Santa Catarina (1) e São Paulo (5).
Finalizada em 12 de novembro de 1823, o texto da proposta não agradou Dom Pedro I, que dissolveu a Constituinte, e alguns parlamentares foram presos, e, assim, o texto da Constituição não foi aplicado.
Esta Constituição teve o apelido de “Constituição da Mandioca” porque estabelecia que somente brasileiros, com renda anual similar a 150 alqueires de mandioca, poderiam votar.
Em 25 de março de 1824, sem debates, a primeira Constituição do Brasil foi imposta por Dom Pedro I, ou seja, outorgada. O poder nacional se dividiu em quatro: Executivo, Legislativo, Judiciário e Moderador. Este quarto poder era representado exclusivamente pelo imperador e estava acima dos demais. O Estado tornou-se então formalmente centralizado e autoritário. O voto estava restrito aos homens de mais de 25 anos e renda anual igual ou superior a 100 mil réis.
A Constituição de Dom Pedro I tinha aspectos liberais ao garantir liberdades civis e políticas, resguardando direitos, como a liberdade religiosa e a propriedade privada. Porém a escravidão foi mantida em vigência, pois o documento nada mencionava a seu respeito. A única referência aos escravos era para lhes cercear o direito ao voto.
Era impositivo que assim o fosse? Não. Entre os punidos da Constituinte estava um gênio, José Bonifácio de Andrada e Silva.
Em nossa história de mais de 500 anos encontramos um Estadista, Getúlio Dornelles Vargas, e dois gênios, o já mencionado Patriarca da Independência, e o maior de todos os mestres, o antropólogo, educador e político Darcy Ribeiro.
José Bonifácio, o patriarca
José Bonifácio de Andrada e Silva nasceu em Santos (SP), a 13 de junho de 1763, e faleceu em Niterói (RJ), aos 6 de abril de 1838. Foi cientista, descobridor de quatro minerais, incluindo a petalita, que mais tarde permitiria a descoberta do elemento lítio, e a andradita, assim denominada em sua homenagem. Foi político, promovendo ações para independência nacional, que lhes valeram o epíteto de Patriarca da Independência, e autor de projetos para o Brasil.
Com a dissolução da Constituinte ficou exilado na França, com sua família, dos 61 aos 66 anos. Considerou-se insultado por Dom Pedro I ter concedido a sua amante, Domitila de Castro e Canto Melo, o título de Viscondessa de Santos, justamente a cidade na qual nascera. E esta amante foi a lobista que os banqueiros ingleses constituíram junto ao Imperador e ao governo brasileiro.
“Chegada a época feliz da regeneração política da nação brasileira, e devendo todo cidadão honrado e instruído concorrer para tão grande obra, também eu me lisonjeio que poderei levar ante a Assembleia Geral Constituinte e Legislativa algumas ideias, que o estudo e a experiência têm em mim excitado e desenvolvido”.
“Como cidadão livre e deputado da nação, dois objetos me parecem ser de maior interesse para a prosperidade futura deste Império”.
“O primeiro é um novo regulamento para promover a civilização geral dos índios, que farão com o andar do tempo inúteis os escravos”.
“Segundo, uma nova lei sobre o comércio da escravatura e tratamento dos miseráveis cativos”.
“Como poderá haver uma Constituição liberal e duradoura em um país continuamente habitado por multidão imensa de escravos brutais e inimigos?”
“A sociedade civil tem por base primeira a justiça, e por fim principal a felicidade dos homens; mas que justiça tem um homem para roubar a liberdade de outro homem, e o que é pior, dos filhos deste homem, e dos filhos destes filhos?” (José Bonifácio de Andrada e Silva, “Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravatura”, in Projetos para o Brasil, organização de Miriam Dolhnikoff, para Companhia das Letras, SP, 1998).
Bonifácio propunha a miscigenação das raças no Brasil e chegava a propor “mandar vir de Macau casais de chins artífices” ao tempo que se construíssem estradas, navegações pelos rios, de modo a integrar o País pelo transporte e pelo povo.
E, acrescenta o Patriarca, “como o Brasil começa a civilizar-se no século 19 deve chamar e acolher a todos os estrangeiros que lhe podem servir de mestres nos ramos da instrução e da economia pública”.
Na visão prospectiva da comunicação, como formadora de ideais e comportamentos, José Bonifácio instava para “em todas as cidades das províncias do Brasil deve ter o governo uma imprensa”, um sonho ainda sem efetividade em 2024.
Brasil independente permanece colonizado
Pagou nosso Patriarca com o exílio, a indiferença e o alheamento dos brasileiros tantos projetos, tanto amor, tamanha dedicação ao progresso nacional.
Em 1836 é publicada em Londres, pela Smith Helder & Co., a História do Brasil, escrita pelo comerciante inglês John Armitage (1807-1856), que aqui chegara aos 21 anos e permanecera até 1835. É um testemunho da época que assim descreve a ação do Imperador:
“Foi grande o sentimento e consternação dos liberais, vendo dissolvida a Assembleia Constituinte, por eles considerada como o palácio de suas liberdades; ao contrário, os portugueses residentes no Rio de Janeiro, tanto realistas como sectários das Cortes extintas, pela maior parte exultaram; haviam eles contemplado com desgosto a convocação da Assembleia e aplaudiram a sua dissolução”.
“Sua Majestade”, prossegue Armitage, “contudo não julgou prudente confiar-se unicamente a este partido. Em um manifesto assinado por seu punho, com data de 16 de novembro, todas as aberrações daquela Assembleia foram sagazmente atribuídas ao gênio do mal. O Imperador, com ingenuidade, confessava que havia mandado reunir as tropas em São Cristóvão com designo, asseverou ele, de deixar em plena liberdade a Assembleia. Nesse mesmo documento se faziam veementes queixumes acerca das calúnias de que fora o objeto: a proposta para se retirarem as tropas da vizinhança da Cidade foi estigmatizada como medida tendente a privar o Governo de sua necessária energia e vigor; e fazia lembrar ao povo que o Imperador havia sim dissolvido aquela Assembleia para manter a tranquilidade pública; e que pelo mesmo decreto havia convocado outra, confirmando-se assim o direito constitucional dos seus súditos”.
Neste livro, publicado em português pelas Editora Itatiaia (Belo Horizonte) e Editora da Universidade de São Paulo (SP), em 1981, Armitage disserta sobre as batalhas militares e lutas políticas que tomaram 1824 e que trouxeram ao Brasil o Encarregado dos Negócios Estrangeiros da Inglaterra, George Canning sob o pretexto de mediá-las. Na verdade, Canning, em sua curta estadia, estava mais interessado em afastar a França de influenciar quaisquer das partes em desacordo na política brasileira e ampliar a atuação inglesa no país que então surgia.
Longe, portanto, estavam os projetos de Bonifácio para construção de um Império Luso-Brasileiro, onde as nossas dimensões e riquezas já indicavam quem seria o governante.
Perdeu o Brasil a primeira oportunidade de se constituir como potência no mundo industrial que surgia.
Questões raciais e de gênero permanecem pautando a política
Houve o esforço civil e militar, na década de 1920, denominado Tenentismo, vitorioso com a Revolução de 1930. Foi a segunda oportunidade de o Brasil conquistar sua Soberania e a população a cidadania.
Getúlio Vargas, o Estadista, foi um seguidor de José Bonifácio, o Patriarca.
Logo no início de seu governo, como Presidente Provisório, Vargas trouxe para a governança do Estado a educação e a saúde, condições da cidadania, e o trabalho, indústria e comércio, condições da soberania.
Mas as forças do atraso, da permanente sujeição colonial do Brasil, não podiam deixar triunfar o governo que colocava a prioridade na Questão Nacional: soberania e cidadania. E lançam, com os sempre presentes capitais estrangeiros, a denominada “Revolução Constitucionalista” de 1932. A este respeito nada melhor do que as palavras de Alzira Vargas do Amaral Peixoto, filha de Getúlio e sua auxiliar, que se encontra em Getúlio Vargas, meu pai (Editora Globo, Porto Alegre, 1960).
“A Revolução Constitucionalista de São Paulo não era qualquer dessas três coisas. Não era uma revolução. Era uma represália. Não era constitucionalista, pois apenas contribuiu para perturbar a constitucionalização do país. E, por estranho que pareça, também não era paulista”. Nesse momento não poderia nem teria Alzirinha, como era conhecida esta sua filha, como imputar a capitais estrangeiros o interesse na recolonização do Brasil; sai-se então com um parágrafo amplo o suficiente para nele incluí-lo e não precisa-lo: “O fermento veio do Rio Grande do Sul, e a massa que se servia da juventude e do solo bandeirante como campo de batalha era feita dos grãos de ódio de todos os reacionários, de todos os tempos e de todos os Estados”.
Todo Governo Vargas constituiu as bases do novo Brasil, e que teve nem sempre integrais e nunca tão competentes seguidores, no que se denomina Era Vargas, de 1930 a 1980, os nossos 50 anos gloriosos.
Nas décadas de 1960 e 1970, antigos tenentes, agora generais, de modo autoritário e excludente, buscaram com a Questão Nacional governar o País: Costa e Silva (1967-1969), Emílio Médici (1969-1974) e Ernesto Geisel (1974-1979). Mas faltou-lhes o diálogo com o povo, a atualização das questões nacionais pela inclusão dos principais interessados: os brasileiros, especialmente aqueles que sofriam e permanecem sofrendo a exclusão, a discriminação por qualquer preconceito.
Desta realidade, as finanças que passam a dominar o Brasil, após as desregulações da década de 1980 e da nova bíblia, para os governos em toda parte do mundo, o “Consenso de Washington”, as “finanças apátridas” se aproveitam para submergir, mascarar, encobrir a Questão Nacional com miríade de questões identitárias e ambientais.
E estas finanças aparecem no Brasil como Organizações Não Governamentais (ONGs), com dinheiro público, e como organizações financeiras, com juros altos de uma dívida que não tem fim.
O que são Direitos Humanos senão tratar todo brasileiro como cidadão, como um par, e para isso, para que haja esta igualdade, o Estado lhe proporcionar saúde e instrução universal e gratuita, trabalho, com o permanente desenvolvimento tecnológico e industrial e agrícola do Brasil, projetos urbanos que lhe possibilite habitação, num ambiente sadio, com mobilidade para alcançar todos recursos desejados. E como previa e propunha o Patriarca, a comunicação, em todas cidades, para que o governo coloque a realidade, possibilite este reforço na educação, com a verdade dos fatos e suas análises corretas.
Assim não haverá, salvo as exceções que confirmam a regra, racismos, exclusões, violências em qualquer nível. E será a maior homenagem que se poderá prestar ao brasileiro exilado e a aquele que se imolou pela Pátria: Bonifácio e Vargas.
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.