Como ser um bom repórter

Em tempos de IA, Lillian Ross ensina que nada substitui um bom observador com um bloquinho sempre à mão

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Capa e 2 páginas do livro Sempre Repórter, de Lillian Ross
Livro Sempre Repórter, de Lillian Ross (editora Carambaia)

Vida de repórter não é fácil. Mesmo quem não é do ramo já viu na televisão, em algum momento, um bolinho de jornalistas se acotovelando com seus gravadores em punho – atualmente substituídos pelos celulares – para registrar a fala de uma autoridade. Faz parte da rotina da profissão. O que talvez os mais jovens não saibam é que alguns ícones do jornalismo impresso nunca foram muito fãs dos gravadores, mesmo reconhecendo que para determinadas situações ele é essencial. Uma delas foi a americana Lillian Ross, que trabalhou na The New Yorker e foi, por mais de 60 anos, uma das mais importantes repórteres da prestigiosa revista norte-americana.

No último de seus livros (o excelente Sempre Repórter, de 2015, relançado no final de 2024 pela Carambaia), ela faz questão de registrar uma de suas regras pétreas: não usar gravador. “Percebi que tagarelice literal muitas vezes induz a erros e ofusca a verdade”, diz Ross, que nos deixou em 2017, oito meses antes de completar um século de vida.

A repórter fez escola e influenciou uma geração de jornalistas e escritores americanos que, a partir da década de 60, inaugura o jornalismo literário (new journalism), movimento que rompe com a objetividade rígida da imprensa tradicional, misturando em seus textos técnicas da literatura com a reportagem factual. Os americanos Truman Capote, Tom Wolfe e Gay Talese estão entre eles. No Brasil, os grandes Joel Silveira, que cobriu a Segunda Guerra Mundial, e José Hamilton Ribeiro, ferido no Vietnã, são os nomes mais importantes dessa corrente.

Assim com Lillian Ross, o novaiorquino Gay Talese também não usava gravador. Anotava tudo à mão, geralmente usando blocos quadrados de cartolina recortada. O gravador, reconhece ele, pode inibir os entrevistados, deixando-os menos à vontade. Além disso, a escrita manual força o repórter a prestar mais atenção aos detalhes e ao comportamento das pessoas, fatores fundamentais para construir um bom perfil do entrevistado.

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Maior biógrafo brasileiro, Ruy Castro compartilha a mesma prática de seus colegas norte-americanos. Autor das biografias memoráveis de Garrincha, Carmen Miranda e Nelson Rodrigues, ele se limita a usar bloco e caneta: “As pessoas reagem de maneira diferente e o gravador pode ser terrivelmente inibidor”, explica o escritor em A Vida por Escrito (2022, Companhia das Letras).

Ross lembra que palavras transcritas de um gravador representam apenas uma versão da realidade. A observação direta e a escuta são sempre mais importantes do que uma pobre fala entre aspas. “Escrevo só o que pode ser observado, aquilo que vejo e ouço. As palavras e a boa escrita jamais poderão ser suplantadas por qualquer tipo de ação mecânica, por mais brilhante ou inovadora que seja”, ensina a jornalista.

Tudo isso está nesse livro que reúne 32 reportagens e perfis publicados entre 1948 e 2005 na revista que completa um século de vida neste 2025, justamente em uma fase tão delicada para a imprensa escrita em todo o mundo – e especialmente para as revistas (a Veja, por exemplo, que chegou a vender mais de 1 milhão de exemplares por semana na década de 90, hoje não chega a 90 mil cópias por edição).

Em um momento delicado, em que temos de nos desdobrar para checar se uma gravação é real, o trabalho minucioso de observação de Lillian Ross é uma aula de jornalismo, especialmente para os mais jovens. Munida apenas de papel e caneta, a novaiorquina confiava piamente em suas memórias e anotações para redigir reportagens que até hoje marcam o jornalismo mundial.

Entre os magníficos textos da repórter, está um perfil de Ernest Hemingway, escrito em 1950. Ela o acompanhou durante alguns dias em que o escritor esteve de passagem por Nova York. A capacidade de recriar os diálogos que teve com Hemingway e os detalhes do encontro nos transportam para dentro do quarto do autor. É coisa de gênio.

O mesmo vale para dois textos que ela publicou sobre o saudoso ator Robin Williams, em 1986 e 1993. Ou a cobertura da competição que elegeu a Miss América em 1949, quando moças jovens e esculturais (de acordo com os padrões da época) se reuniram em Atlantic City para concorrer ao título de mulher mais bonita dos EUA. Todas podiam participar, desde que as candidatas cumprissem os requisitos obrigatórios do concurso: “Tivessem concluído o colegial, não fossem nem nunca tivessem sido casadas e não fossem negras”.

Como o leitor pode perceber, muita coisa mudou nesses últimos 75 anos. Ainda bem. Outras, no entanto, seguem firmes, como os ensinamentos de Lillian Ross no livro Sempre Repórter. A obra deveria ser obrigatória em todas as escolas de Comunicação do Brasil.

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