O Brasil é um país riquíssimo, em todos os sentidos. No entanto, a maioria da população se encontra em risco de segurança alimentar, ou seja, passando fome; o desemprego bate recorde; inúmeras empresas já quebraram principalmente por causa dos juros extorsivos e falta de acesso a crédito; e os bancos, apesar de tudo isso, batem recordes cada vez maiores de lucros.
A culpa da desgraça social que assistimos não é só da pandemia, que, aliás, poderia estar sendo enfrentada de forma bem diferente, se, em vez de todo o dinheiro – quase R$ 2 trilhões – que toda a sociedade mantém depositado ou aplicado em bancos retornasse às empresas, pessoas e até ao governo, sob a forma de empréstimos a juros baixos, irrigando a economia, possibilitando investimentos geradores de emprego e renda.
E por que razão isso não está acontecendo no Brasil? O que acontece com essa montanha de dinheiro da sociedade que se encontra depositado ou aplicado nos bancos?
A resposta é: overnight!
Já ouviu falar? Há décadas, os bancos ganham juros diariamente às custas do seu dinheiro, do meu, e de todas as pessoas, empresas e órgãos governamentais que possuem contas bancárias. Esse ganho, que ocorre na virada da noite, é o chamado overnight, e é pago com dinheiro do Tesouro Nacional, através do Banco Central, aos bancos. Assim, dinheiro público que deveria ir para investimentos em Saúde, Educação, Assistência, Previdência, Segurança etc. vai para os bancos, remunerando a sua ineficiência: o dinheiro que eles deixam de emprestar à sociedade.
As desculpas para “justificar” essa doação de dinheiro público aos bancos são incríveis e vão desde a alegação de que “os juros não podem cair” (!) até fórmulas criativas de “controle inflacionário”, quando todos sabemos e dados oficiais provam que a inflação, no Brasil, decorre do aumento de preços dos alimentos e preços administrados, tais como energia, combustíveis, transportes, telefonia, tarifas bancárias, pedágios e medicamentos.
O Brasil é o campeão mundial do overnight. Em 2020, no auge da pandemia, em setembro, alcançou o volume de quase 25% do PIB: R$ 1,7 trilhão! Em agosto, o overnight já tinha chegado a R$1,6 trilhão, conforme foi noticiado.
Logicamente, o Brasil é também o campeão mundial dos juros de mercado indecentes. Claro! Por que razão os bancos iriam se esforçar para emprestar à sociedade se podem ganhar a remuneração diária paga pelo Banco Central?
Só emprestam a taxas elevadíssimas! Toda vez que citamos as taxas de juros praticadas no Brasil – tanto no comércio, como no cheque especial, no cartão de crédito ou nos empréstimos bancários – ninguém lá fora acredita.
O mais grave é que essa remuneração diária é ilegal e vem sendo feita por meio do abuso das chamadas “Operações Compromissadas”, que no Brasil chegam a esse volume de quase ¼ do PIB, destoando do que acontece no resto do mundo, cujos patamares dessa operação são ínfimos, como mostra até estudo publicado pelo IFI do Senado.
Além de ilegal, é uma operação extremamente nociva à economia, pois provoca a elevação dos juros no mercado, amarrando toda a economia do país, além de custar caro aos cofres públicos: em 10 anos, custou quase R$ 3 trilhões e fez explodir a dívida pública.
O PL 3.877/2020, votado nesta terça-feira (22) na Câmara dos Deputados, “legaliza” essa remuneração diária aos bancos e, ainda por cima, a deixa sem limite, ficando a estipulação dos juros à vontade dos bancos que comandam o Banco Central independente.
A figura encontrada para “legalizar” a remuneração diária aos bancos foi a criação do “Depósito Voluntário Remunerado”, isto é, o Banco Central passará a ficar, a partir desse PL 3.877/2020, obrigado a pagar juros diários aos bancos sobre o dinheiro que sequer pertence a eles: a sobra de caixa que os bancos depositam no Banco Central é o dinheiro de toda a sociedade (pessoas, empresas e órgãos governamentais que depositam ou aplicam dinheiro em bancos), que eles deixam de emprestar porque cobram juros extorsivos e preferem ganhar os juros fáceis pagos pelo Banco Central.
Essa remuneração diária parasita, paga sem justificativa técnica que se sustente e sobre um dinheiro que sequer pertence aos bancos, é uma verdadeira Bolsa Banqueiro!
O PL 3.877/2020 sequer veio acompanhado de uma demonstração financeira de quanto essa Bolsa Banqueiro, que passa a ser uma despesa obrigatória, irá custar e impactar o orçamento federal, de onde saem os recursos para o seu pagamento.
O Art. 113 do ADCT da Constituição Federal, que tem sido usado como justificativa para jogar no arquivo inúmeros projetos de lei que pretendem construir escolas, hospitais, instituições de pesquisa, entre outros, não foi questionado dessa vez. O artigo diz:
“Art. 113. A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro.”
Na calada da noite, pisando na Constituição, legalizaram o overnight, em votação expressiva, que mostra o grande apreço daqueles parlamentares pelos ganhos injustificáveis dos bancos; um verdadeiro escárnio diante da alegação de que não tem dinheiro para um auxílio emergencial digno ou para o atendimento às demais necessidades básicas do povo que nasceu e padece no rico Brasil.
A Auditoria Cidadã da Dívida se orgulha de ter lutado muito para denunciar a Bolsa Banqueiro, que já vem acontecendo ilegalmente há anos, sangrando as contas públicas, além de ter sido uma das principais operações responsáveis pela crise fabricada a partir de 2014. Elaboramos inúmeros artigos, vídeos, posts, mensagens e até a novela “Assalto aos Cofres Públicos”, como registrado no site auditoriacidada.org.br e em nossas redes sociais.
Tentamos bravamente reverter essa Bolsa Banqueiro, que se encontrava em vias de ser legalizada por projetos de distintas iniciativas que se colocam politicamente em lados opostos, mas que curiosamente se mostraram unidas na criação do “Depósito Voluntário Remunerado”, como mostram os diversos projetos de lei: PL 3.877/2020 (PT); PLP 112/2019 (Bolsonaro e Paulo Guedes); e PL 9.248/2017 (Michel Temer, Ilan Goldfajn e Henrique Meirelles). Poucos foram os parlamentares que tiveram a coragem de se posicionar declaradamente e votar contra o projeto.
Lá na frente, quando chegarmos à época de reconstrução do país e resgate da dignidade do nosso povo, se alguém perguntar como se admitiu um roubo assim tão explícito e danoso à economia do país, não teremos que nos envergonhar, como aqueles que defenderam e deram a vitória ao overnight e legalizaram a Bolsa Banqueiro. O tempo dirá! Seguiremos lutando!
Maria Lucia Fattorelli é coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida e membro titular da Comissão Brasileira Justiça e Paz da CNBB.