Conversamos com Samuel Pessoa, pesquisador do Ibre e chefe de pesquisa econômica do Julius Baer Brasil, sobre a atual situação econômica do país.
Qual a sua avaliação sobre o atual momento macroeconômico e suas perspectivas? Por exemplo, nós estamos lidando com expectativas inflacionárias, dúvidas quanto a política fiscal do atual governo, um novo ciclo de alta da Selic e o comportamento do dólar, mas enquanto isso o PIB vem se comportando relativamente bem. O que explicaria essa desconexão?
Há uma dessintonia, ou, talvez, até uma aparente inconsistência aos olhos do público. A economia está bastante bem, surpreendendo de forma positiva há muitos trimestres, com um crescimento muito bom, desemprego atingindo as mínimas históricas, nível de utilização da capacidade instalada na indústria se aproximando das máximas históricas e a balança de pagamentos, principalmente a balança comercial, confortável.
Nós deveríamos estar felizes com a economia, mas quando olhamos os preços do mercado brasileiro, eles não refletem essa bonança, já que há uma dessintonia entre os dados duros da conjuntura econômica e os preços dos ativos, que estão muito descontados. O câmbio, que é a primeira razão de troca entre o Brasil e o resto do mundo, está muito desvalorizado e barato, o que significa que há alguma percepção de risco ou algum problema. Isso está fazendo com que, em um primeiro momento, aparentemente, os preços dos ativos não estejam conversando com as boas notícias que estamos tendo na conjuntura econômica.
Por que os agentes econômicos estão tão preocupados com as expectativas inflacionárias? Essa preocupação se justifica?
Essa preocupação se justifica. O motivo é que nós estamos vindo de um monte de reversões de choques da pandemia. A inflação caiu muito, mas ela parou de cair. O período de reversão do choque já passou e nós temos uma inflação que vai se estabilizar em algum nível entre 4% e 4,5%, sendo que aqui nós estamos trabalhando com uma inflação de 4,4% para 2024, mas não há sinais de que essa inflação vai para a meta. O problema é que dadas as notícias boas que elenquei no início da nossa conversa, tudo sugere que vamos ter, a partir do próximo ano, um processo de aceleração inflacionária.
Agora, a inflação está em um nível alto, andando de lado, mas na minha avaliação, em algum momento ela vai começar a se descolar. Esse certo mau humor, aparentemente infundado do mercado financeiro, que se expressa nos preços dos ativos em relação à economia brasileira, existe porque a trajetória da nossa economia, em diversas dimensões, é insustentável. Como o mercado financeiro olha para a frente e faz projeções, isso gera coisas ruins hoje, mesmo que para a vida cotidiana, para as manchetes de jornais e para a vida das pessoas, que não são da área, nós estejamos vivendo uma boa situação, pois a economia está bem. Ocorre que o problema não é a fotografia, mas o filme, sendo que as pessoas vivem mais a fotografia, enquanto o mercado financeiro vive o filme.
O que está levando a essa situação?
Nós temos uma economia que tem uma situação fiscal insustentável, ou seja, se deixarmos as regras fiscais operarem do jeito que estão operando, nós não conseguimos ver, em nenhum momento à frente, um processo de estabilização da dívida pública, pois tudo o que conseguimos enxergar é dívida pública para cima. Se a dívida pública cresce ilimitadamente, uma hora ela vai virar inflação, que vai desorganizar o sistema econômico e nos fazer voltar 30 anos.
O problema é que essa insustentabilidade fiscal não é um problema técnico. Não é que o ministro Fernando Haddad não percebeu o problema no início, pois ele está fazendo um trabalho bem competente e está totalmente ciente. A questão é de economia política. O Congresso estabeleceu obrigações do setor público como pagamento de aposentadorias, programas sociais e seguros públicos como seguro-desemprego, auxílio-doença e aposentadoria por invalidez, mas não estabeleceu bases tributárias suficientes para fazer frente a essas obrigações.
Nesse aspecto, o fato de estamos com a economia muito bem, em certo sentido torna a questão pior, pois a receita de impostos é cíclica. Quando a economia bomba, os impostos crescem, mas quando há uma recessão econômica, os impostos caem proporcionalmente. O problema é que a atual situação sugere que estamos em uma situação de arrecadação muito favorável, mas mesmo com essa situação existe um déficit primário, sendo que a receita está em níveis muito altos porque o ciclo econômico é favorável.
Quando se faz contas, e o mercado financeiro está cheio de gente fazendo contas, nós vemos que o déficit estrutural primário, e entenda-se por estrutural a posição média do ciclo econômico, ou seja, nem em uma posição muito positiva e nem em uma posição muito negativa, está sendo ajudado pelo ciclo econômico. Quando calculamos o déficit fiscal em condições normais de operação da economia, ele fica ainda maior que o número que temos hoje, e quando projetamos isso para a frente, isso gera um problema de endividamento sem fim.
Além deste problema, existem duas inconsistências no Arcabouço Fiscal. A primeira são os mínimos condicionais. A Constituição diz que o gasto mínimo da União com saúde e educação tem que crescer na velocidade da receita. Se o Arcabouço Fiscal diz que o gasto agregado tem que crescer 70% do crescimento da receita, com os limites de um piso e de um teto, duas rubricas muito grandes do orçamento não podem crescer a um indexador cuja velocidade é, por desenho, maior do que o crescimento do todo, pois, com o passar do tempo, essa parte vai espremer o resto e não vai ter dinheiro para os outros gastos. Os mínimos condicionais em saúde e educação têm que ter uma regra de crescimento que converse, de forma lógica e consistente, com a regra de crescimento do gasto agregado.
A segunda inconsistência é a regra de valorização do salário mínimo, que está relacionada ao crescimento real do PIB. O problema é que salário é remuneração de indivíduo, mas PIB real não conversa com o indivíduo. O que conversa com ele é o PIB per capita ou produtividade do trabalho.
Essas inconsistências fazem com que as projeções piorem ainda mais, pois não vemos a dívida caindo. É isso que os preços muito deprimidos estão refletindo: uma percepção de risco elevada em função das inconsistências da nossa economia política, que eu chamo de conflito distributivo, que são um orçamento em que a receita não conversa com a despesa e regras fiscais inconsistentes. Para piorar, nós não enxergamos nenhuma disposição do presidente Lula em encaminhar esses desequilíbrios. É daí que vem o mau humor do mercado.
O Brasil suportaria uma dívida maior que a atual? Por que pouco se toca na questão da dívida?
A dívida brasileira é alta, mas é muito comum ouvir o questionamento do motivo pelo qual a dívida, que hoje está em 70% do PIB, e que está indo para 76%, 77%, não poderia ser 200% como no Japão.
O ponto é que o Estado japonês é muito endividado para que a sua economia opere a plena carga. Isso porque o setor privado poupa muito, o que faz com que haja uma carência crônica de demanda. Isso é percebido através da consolidação da dívida pública com os ativos privados. Quando consolidamos o setor público japonês com o setor privado, que tem ativos equivalentes a 280% do PIB, nós vemos que o país tem ativos contra o resto do mundo equivalentes a 80% do PIB. Isso é uma enormidade.
Se fizermos essa conta para a Itália, os ativos líquidos são de 8% do PIB, mas se fizermos esse cálculo para o Brasil, vamos ter um passivo de 40% do PIB. Ou seja, a nossa situação é muito diferente da situação japonesa. O Japão pode ter uma dívida de 200% do PIB, mas nós temos que ter uma dívida menor que 80%.
Fala-se pouco de dívida pública porque, na verdade, a dívida é resultado de uma série de fatores. A preocupação do mercado é a dívida, mas não se consegue atuar diretamente nela, pois a dívida é o que é. Vai fazer o que? Vai se dar um calote? O único jeito de fazer a dívida cair é uma situação fiscal mais saudável. O problema é que o presidente Lula tem dado mostras de que não está querendo encaminhar esse problema nesse terceiro mandato. Acho que ele quer deixar isso para um quarto mandato, não sei direito.
Na época do Governo Fernando Henrique, discutia-se muito a necessidade do superávit primário para que a dívida fosse controlada, só que hoje acostumou-se com o déficit primário, está tudo bem e a turma toca o barco. O que explica essa mudança?
Você tem razão. Na época do FHC, havia um sentido de urgência de se fazer um primário rápido, mas agora não há mais isso. Essa mudança se deu por causa da acumulação de reservas internacionais, que cresceram entre 2005 e 2010. Na época do FHC, o Brasil tinha poucas reservas, sendo que hoje o país possui quase 15% do PIB em reservas internacionais.
Essas reservas tornaram a nossa situação internacional muito mais tranquila, já que elas mudaram a lógica de resposta da economia do país a um choque externo. Como disse, o passivo brasileiro contra o resto do mundo é de 40% do PIB, só que desde que o país passou a acumular reservas, esse passivo passou a ser denominado na nossa moeda. Essencialmente, ele é composto por investimentos diretos, investimentos em títulos da dívida pública e investimentos na Bolsa, todos feitos por estrangeiros.
Quando consolidamos as nossas reservas em dólar com as nossas dívidas em dólar, como dívidas comerciais ligadas às importações ou dívidas bancárias contra bancos internacionais, o Brasil é credor. Neste caso, se a situação do país piorar e o câmbio desvalorizar, os ativos em dólar passam a valer mais. Quando um país tem muitas reservas, a dívida pública acaba sendo contracíclica, ou seja, quando o país vai mal, a dívida cai, pois a conversão em reais dos ativos em dólar melhora a situação patrimonial do setor público, o que gera um enorme amortecimento de risco. O Governo FHC não tinha isso.
Na época, quando as coisas pioravam e o câmbio desvalorizava, a dívida em dólar fazia com que a dívida do setor público aumentasse ainda mais, piorando ainda mais a percepção de risco e fazendo com que o câmbio desvalorizasse ainda mais, o que fazia com que entrássemos um círculo vicioso mais rapidamente. Hoje, o país possui uma retroalimentação que amortece, o que faz com que tenhamos uma capacidade de conviver com as nossas inconsistências fiscais sem os grandes estresses que tínhamos no período FHC.
Na sua avaliação, existe uma visão estratégica quanto a economia brasileira ou pelo menos alguma coisa que lembre isso vagamente?
Eu acho que não, e eu não sei se isso é bom ou ruim. Na verdade, eu vou fazer um argumento que te convença que é bom que não exista, pois, na minha percepção, a existência de uma grande visão estratégica sobre o país, operacionalizada em uma política, é inconsistente com uma democracia, onde não há espaço para que haja um grande projeto ou uma grande estratégia de desenvolvimento, já que isso requer um ditador que vai tomar a decisão pela sociedade.
Quando se tem uma sociedade heterogênea, desigual e diversa como a brasileira, é muito difícil construir um consenso tão grande para que se consiga construir um projeto de desenvolvimento pactuado entre todos. Acho que isso é meio utópico.
A democracia é um dia após o outro tentando administrar as diferenças e vendo se há algum processo evolutivo que gere aprendizados a partir dos quais consigamos construir uma base de crescimento um pouco mais sólida e longa que não seja um voo de galinha.
Isso é difícil, pois quando começamos a melhorar um pouco, as demandas são imensas dadas as desigualdades e necessidades que temos. Nós vimos isso na primeira presidência do Lula, que recebeu do FHC uma situação muito arrumada, já que não havia uma herança maldita, sendo que o Palocci arrumou mais um pouco, tanto que em 2007 e 2008, o país já tinha reservas e uma situação fiscal mais sólida. Se o petismo não fosse com tanta sede ao pote no aumento dos gastos e dos programas públicos, nós não teríamos chegado em 2013 em uma situação fiscal tão ruim, mas isso aconteceu porque ele é muito sensível às necessidades da população brasileira mais simples. Eu entendo isso, mas também existe o outro lado do petismo que é o nacional desenvolvimentismo e o intervencionismo, que gera muito gasto público e que não tem nada a ver com os mais pobres. Esse é um projeto de desenvolvimento totalmente equivocado e que não dá certo no Brasil.
Um lado da grande crise de 2014 a 2016 foi que o país deu um passo maior que a perna, pois parecia que estávamos em uma situação confortável. Quando isso acontece, as necessidades e as carências da sociedade falam mais alto e acabamos construindo as condições para a próxima crise. Esse é o medo que eu tenho hoje, pois apesar de estarmos em uma situação que parece boa, estamos construindo as condições da próxima crise com esse desequilíbrio fiscal e com o problema de endividamento.
O Lula é um homem super inteligente e sabe de tudo o que eu falei sobre o desequilíbrio fiscal. O Fernando Haddad também é muito inteligente e está totalmente ciente da situação. O problema é que eles têm um projeto eleitoral para 2026 e avaliaram que dá para conviver com essas inconsistências até lá, ser reeleito e resolver os problemas depois.