Construção civil na bolsa: a batalha de dois mundos no ciclo de juros

A ciclicidade do setor de construção civil e como as políticas monetárias impactam suas perspectivas de investimento Por Sandra Peres Komeso

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Construção civil (foto de Scott Blake na Unsplash)
Construção civil (foto de Scott Blake na Unsplash)

O setor de construção civil no Brasil é a personificação da ciclicidade econômica, um termômetro sensível aos humores da política monetária e da confiança do consumidor. Suas ações na bolsa desenham gráficos de picos e vales profundos, tornando-o um terreno fértil para teses de investimento arrojadas, mas também uma armadilha para os desatentos. Hoje, o setor vive um momento de clara dualidade: enquanto a perspectiva de queda da taxa Selic acende uma luz de otimismo para todos, a realidade operacional e os vetores de crescimento criaram dois mundos distintos que batalham em campos diferentes: o da baixa renda e o da média/alta renda.

De um lado, temos as construtoras focadas no programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV), movido pela demanda social resiliente, mas cuja rentabilidade é diretamente atrelada às políticas e orçamentos do governo. Este segmento sofreu um golpe duríssimo com a explosão dos custos de construção (INCC) nos últimos anos, que espremeu margens e testou a capacidade de sobrevivência das companhias. A MRV (MRVE3), gigante do setor, sentiu o impacto de forma aguda, passando por um doloroso processo de “turnaround” para estancar a queima de caixa e recuperar a rentabilidade, mesmo que ao custo de um menor volume de lançamentos. A Tenda (TEND3), focada na baixíssima renda, enfrentou um desafio existencial, forçada a reestruturar seu modelo de negócio.

No entanto, mesmo neste cenário adverso, surgiram os destaques. Direcional (DIRR3) e, principalmente, Cury (CURY3) se consolidaram como benchmarks de excelência operacional. Com uma gestão rigorosa de custos, projetos de alto giro, elas não apenas navegaram pela crise, mas entregaram resultados consistentemente, com margens e retornos (ROE) que se tornaram a referência para todo o setor.

Do outro lado do espectro, as incorporadoras de média e alta renda vivem realidade distinta. Elas são as beneficiárias diretas e mais imediatas do início do ciclo de queda da Selic. Juros mais baixos significam prestações de financiamento imobiliário mais acessíveis, destravando uma demanda qualificada e reprimida. Aqui, a Cyrela (CYRE3) se posiciona como a marca premium, com um balanço robusto e um portfólio de projetos desejados. A Eztec (EZTC3), famosa por sua lendária disciplina financeira e posição de caixa líquido, adotou uma postura ultracautelosa durante a crise, e o mercado agora aguarda ansiosamente que ela pise no acelerador, utilizando seu vasto banco de terrenos para lançar projetos que capturem o novo ciclo de otimismo.

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Neste nicho, players regionais e especializados também brilham. A Moura Dubeux (MDNE3), líder no Nordeste, capitaliza a força econômica de sua região, enquanto a Lavvi (LAVV3), focada no altíssimo padrão em São Paulo, demonstra a força da demanda no topo da pirâmide com uma velocidade de vendas (VSO) impressionante em seus lançamentos.

As expectativas para o restante deste ano e para os próximos são, portanto, duplas. Para o segmento de baixa renda, o foco continuará sendo a recuperação das margens e a execução eficiente dentro das regras do MCMV. O sucesso aqui depende menos do ciclo de juros e mais da disciplina operacional e da estabilidade das políticas públicas.

Para a média e alta renda, a expectativa é de uma aceleração mais forte. À medida que a Selic seguira com perspectiva de queda, a demanda por financiamento imobiliário deve aumentar, principalmente na média renda, impulsionando os lançamentos e as vendas. E é aqui também que reside o grande paradoxo que intriga o mercado: como tantos empreendimentos continuam a ser erguidos e vendidos em áreas nobres como as de São Paulo, com o metro quadrado em valores recordes e as taxas de juros ainda em patamares restritivos?

A resposta está no perfil do comprador e na ressignificação do imóvel para o topo da pirâmide. O que estamos testemunhando não é um boom baseado em crédito farto, mas um boom de nicho, sustentado por dois principais pilares:

  1. O comprador imune aos juros: O cliente de imóveis de luxo e alto padrão é muito menos sensível à taxa Selic. Uma parcela massiva desses compradores realiza a aquisição com recursos próprios, à vista ou com uma entrada substancial, utilizando o financiamento bancário de forma marginal ou estratégica. Para este perfil, a taxa de juros impacta mais o custo de oportunidade do seu capital do que a viabilidade da compra.
  2. O imóvel como ativo de proteção: Em um cenário de incerteza econômica, o “tijolo” de alta qualidade recuperou seu status de porto seguro. O metro quadrado em regiões consolidadas de São Paulo tem um histórico de valorização consistente, funcionando como uma reserva de valor. A escassez de terrenos nessas áreas nobres garante a exclusividade e a tendência de valorização, transformando a compra em um investimento para proteger e ampliar a riqueza.

Portanto, o desafio para essas empresas será gerenciar o ciclo de construção para entregar projetos sem sofrer com a volatilidade dos custos e, ao mesmo tempo, manter a disciplina para não se embriagar com o otimismo e comprometer o balanço. Em suma, o otimismo com o setor é palpável, mas a execução será a chave. O mercado não compra mais “o setor”, mas sim as teses específicas: de um lado, a eficiência comprovada na baixa renda; do outro, a capacidade de entregar um produto de alto valor agregado para um público resiliente e capitalizado na alta. A era do crescimento a qualquer custo ficou para trás; agora, a palavra de ordem é crescimento rentável e sustentável, em ambos os mundos.


Sandra Peres Komeso é diretora de Relações com Empresas na Apimec Brasil

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